Ricardo Kohn, Escritor.
Gramado é “a trilha onde cresce grama”. E grama deriva do latim, gramen, que significa “relva, pasto, erva, verdura”. Assim, o ato de reconhecer um gramado é tarefa para ruminantes. Todos sabem que essa sensibilidade é própria do instinto alimentar do gado, onde bovinos, caprinos e muares são bem conhecidos pelo sapiens.
Vacas e bois em repasto no gramado
Porém, neste mês de Copa da Fifa 2014, os repórteres dos jogos televisionados continuam a usar expressões próprias para os tempos do rádio e não da televisão. Noticiam tudo, até mesmo o horário em que uma seleção fará, antes do dia do jogo, o que chamam de “reconhecimento do gramado”. É possível que os considerem ruminantes.
Diante de minha estranheza à esta expressão, meus filhos explicaram que se trata de vício do locutor. Significa que “vão bater uma bola”, ver a altura da grama, a firmeza do solo, enfim, sentir pelas chuteiras a ambiência do campo. De toda forma, acho que se trata de misticismo. Afinal, tocar a bola num gramado durante dez ou quinze minutos, não melhora o jogador e “muito menos sua moral” diante do adversário.
Voltemos no tempo
Nas décadas de 1950 e 60 não existia televisão no Brasil. Mas os torcedores portavam “rádios de pilha” para ouvir a irradiação de locutores esportivos. O rádio transistorizado era o celular inteligente daquela época. Acreditavam os torcedores mais fanáticos que ouviam no rádio a exata verdade do que acontecia em campo.
No entanto, havia uma competição tácita entre locutores. Cada um queria ser conhecido como o melhor irradiador. Todos tinham a intenção de aumentar a audiência para a estação de rádio em que trabalhavam. Diziam coisas incríveis e exageravam a mais não poder quando narravam os lances dos jogos. Lembro-me de um locutor que, após cada gol, urrava ao microfone:
─ “Olha lá, olha lá, olha lá! A nega tá lá dentro!”. Havia quem torcesse por outro gol só para ouvir novamente sua fala.
Teve outro, que fora juiz de futebol antes de ser comentarista de árbitros. Ficou conhecido por condená-los em suas narrações. E era implacável:
─ “Errou! Errou! Errou!…“, e descrevia os detalhes que considerava ser a falha do apitador de plantão.
Há casos passados de fabulosos locutores de futebol. Um deles remete ao inesquecível Ary Barroso. Nas irradiações que fazia, torcia descaradamente pelo Flamengo. E quando o rubro-negro era atacado, dizia: “Ih, lá vem os inimigos! Eu não quero nem olhar“. Recusava-se definitivamente a narrar o jogo do adversário e ponto final.
No passado, a influência do rádio e de seus locutores foi tão grande que, ainda hoje, não é raro ver um torcedor dentro do estádio, assistindo ao jogo com o radinho colado ao ouvido. Ele acredita bem mais nas falas do locutor do que no que assiste com os próprios olhos. Afinal, precisa de muita emoção, mesmo que exagerada e mentirosa.
Os herdeiros a atuar na Copa 2014
Confesso que, por princípio cultural, não assisto a novelas e jogos de futebol. Novelas, nunca; futebol, apenas até 1982. Hoje, somente como motivo para aprender algo com meus filhos, que são aficionados neste tipo de negócio. Mesmo assim, apenas em casos eventuais, como Copa do Mundo. Explico.
Há novas gerações de repórteres esportivos que se esforçam para criar falas peculiares nas transmissões televisivas. Porém, em sua maioria, imitam precariamente os antepassados. O máximo que conseguem é gritar um longo e alucinante “GOOOOLLLLL !!!”, que incomoda a quem os assiste. Dói nos ouvidos, até de surdos.
Diante desse fato, visando a revolucionar sua audiência e superar a concorrência, executivos de empresas de transmissão criaram canais quase específicos para futebol, com pequenas equipes fixas – jornalistas e repórteres – a montar variados programas. Trazem convidados especiais (talvez, sem remuneração) para atrair a audiência. Nesta copa, houve um canal de tv que “roubou dois convidados” do concorrente! Ambos, ex-jogadores de seleção.
De toda forma, parece haver sido uma boa ideia, pois publicidade não lhes falta, assim como os incontáveis idiotas “escravizados pela TV”. Temo o dia em que todos os canais a cabo somente transmitirão este esporte. Então, acontecerá a horrenda “bestialização universal”. Porém, dentre todos os repórteres esportivos do país, há um que se destaca sobremaneira. Não pertence à nova geração e parece haver convivido com alguns dos melhores.
Em primeiro lugar, ele pensa que “sabe tudo sobre todos os esportes”, em especial, o futebol. É uma máquina de vomitar estatísticas, mesmo que não sejam do interesse de quem o assista. Parece conhecer a biografia de cada atleta que está em campo – onde nasceu, quem foram seus pais, sua história sofrida na infância (faz 3 minutos de demagogia), quando casou, quantos filhos tem, em que clubes jogou, quanto custa seu passe, quantos gols marcou, contra quais adversários, sua posição no ranking mundial de goleadores, etc. E ele solta toda esta artilharia inútil durante a narração da partida. Esquece-se do jogo…
O segundo problema são suas “opiniões de técnico” e as “profecias” que realiza durante a peleja. Torna-se rapidamente na “máquina de vomitar asneiras”. Critica a tática adotada pelo técnico, diz o que teria sido melhor, muda a escalação e profetiza como será o segundo tempo. Quanto aos árbitros, comete, digamos, “quase insultos”. Condena a arbitragem, diz que “não houve pênalti no lance” (mas houve), que o atacante brasileiro não estava impedido ao marcar o gol (e o mundo inteiro viu que estava) e por aí segue, explicando o “que quis dizer” o ex-árbitro da Fifa que se encontra a seu lado, justamente para analisar a arbitragem!
Esse senhor patético vive de “sorrir para agradar”. Diante de câmeras de TV, perfilado feito “soldadinho de chumbo”, sempre mostra os dentes, mesmo sem motivo, e ainda se acredita simpático. Porém, para ser objetivo, trata-se de um “cara chato”, inconveniente, afora outros adjetivos a que me reservo o direito de não declarar.
João Saldanha – Alegrete, 1917: Roma, 1990
O inesquecível João Saldanha
“Falta João Saldanha nos dias de hoje”, disse um jornalista certa vez. Saldanha foi jogador de futebol no Botafogo, graduou-se em direito e jornalismo, selecionou e dirigiu a seleção brasileira em 1969. Sob seu comando, na fase de qualificação para a Copa de 1970, a seleção ficou invicta. Por fim, foi um exaltado cronista e comentarista esportivo.
Nelson Rodrigues, seu amigo, apelidou-o de “João Sem Medo”, considerando sua tendência de criar e resolver conflitos pessoais e institucionais. Afinal, esperar o quê?, era filho de uma família de “maragatos” e isso já mostrava sua rebeldia e contra-ataques imediatos a decisões impostas de cima para baixo. Graças a esse traço de caráter, deixou o comando da seleção de 1970, meses antes do início da Copa no México, com uma história até hoje não esclarecida.
Como comentarista, Saldanha começou a trabalhar na rádio Guanabara, acho que em 1960. Depois passou pelas rádios Nacional, Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Foi protagonista de programas sobre futebol nas TV Rio, TV Globo e TV Manchete.
Enfim, redigiu crônicas para os jornais Última Hora, O Globo, Jornal do Brasil e revista Placar. Porém, vale dizer, muitas vezes tinham pouco de esportivas. Com toda a experiência que adquirira no futebol, sem a preocupação de ser simpático, de mostrar dentes à larga, não media suas palavras ao criticar jogadores, treinadores e dirigentes. Assim, quase indomável, conquistou inúmeros admiradores pelo Brasil inteiro; mas também fazia desafetos íntimos.
Que eu me recorde, João Saldanha foi o último defensor público do “futebol arte” brasileiro. Criticava de forma candente o que chamava de “europeização” do esporte. São suas essas palavras em 1970, após a vitória brasileira na Copa do México:
─ “Antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do Brasil foi a vitória do futebol. Do futebol que o Brasil joga, sem copiar de ninguém, fazendo da arte de seus jogadores a sua força maior e impondo ao mundo futebolístico o seu padrão, que não precisa seguir esquemas dos outros, pois tem sua personalidade, a sua filosofia, e jamais deverá sair dela”.
João Saldanha não foi perfeito, longe disso. Como qualquer um, cometeu erros na sua vida. Não foi um padrão a ser seguido em várias áreas do comportamento humano. Entretanto, em termos de honestidade, caráter, franqueza e outros princípios básicos, era imbatível em sua profissão. Tanto que o jornalista que afirmou sobre a triste ausência atual de Saldanha completou:
─ “Falta João Saldanha no futebol. Falta João Saldanha no jornalismo. Falta João Saldanha na sociedade. Um marco não só na imprensa, mas na vida”.