Breve intervalo para a inocência


Ricardo Kohn, Escritor.

Quando escrevo, sinto-me quase na obrigação de criticar e denunciar a maior parte das práticas cometidas por nossos governantes: abusos, crimes e diatribes. Creio que o silêncio diante deles não os destronará e os quadros político e econômico que criaram, à revelia da nação, vividos por nossos filhos e netos há mais de uma década, poderão se agravar ainda mais.

Por outro lado, também não posso perder a capacidade de ser suave e até infantil, de pensar como a criança. Não se trata de sentir saudades do passado, mas de confirmar a mim mesmo que a continuidade dos tempos não eliminou a criança que vive em mim, sempre plena de infantis sentimentos que esfumaçam a alegria, tal como um trem movido a vapor.

Cândida e pura é a inocência, que nunca se aliena à realidade; apenas a supera.

No início dos anos 1980, anos após a morte de meu avô, uma de minhas filhas, então com 5 anos, perguntou-me a fazer uma abstração:

Papai, porque que “todo dia é hoje”? ─ e, olhando o céu como a uma miragem, murmurou a si mesma, resignada: “acho que sei onde o bivô está…” Conhecera-o três anos antes.

Questiono-me sobre o que passava em sua cabeça para criar esse diálogo. Não sei se hoje ela se recorda dessa conversa, embora eu acredite que, com base nessa inocência, é que dúvidas e soluções vivem aos pares no cérebro das crianças.

Tenho histórias de mesmo gênero, vividas com outros filhos. O caçula, quando tinha 2 anos, assistia num jornal na tv as imagens de um acidente de avião, que caiu no mar envolto em chamas. “Ninguém sobreviveu”, concluiu o locutor.

Ele ficou sério, com o dedo em riste para a tela, e falou com energia:

─ “Foi nesse avião que eu morri quando tinha 7 anos.” O que passava em sua cabeça? Seria medo ou sentimento da solidariedade? …

Claro que, tal como os pais, ficou muito assustado. Tanto que durante anos não deixou que o levássemos a passear por avenidas à beira-mar. Mas logo se superou: voltou à paz, viajou para a Europa (seu irmão viveu por dois anos em Dublin e hoje mora em Madrid), adora o mar e em breve completará 21 anos.

As crianças na comemoração da passagem deste ano – Jota, Neca, Rapha e Pimpa

As crianças na comemoração da passagem deste ano – Jota, Neca, Rapha e Pimpa

Outra característica das crianças mais comunicativas é a franqueza, a verdade falada. “Gosto de você”, “não gosto de você”, “seu nariz é grande”, são frases curtas com que encerram definitivamente certas circunstâncias.

Nosso filhote, em seu aniversário de 3 anos, pela primeira vez demonstrou que tinha valores próprios, que era capaz de ser severo e repreender até mesmo um adulto.

Ao fim da festa, seguiu para o quarto com amigos e desembrulhava alguns dos presentes que ganhara. Meu irmão, dedicado em registrar a data e a turma, fazia um vídeo do grupo. Para dar mais movimento à garotada, pegou um embrulho do aniversariante e deu a um amiguinho para que o abrisse.

Sentado com os amigos ao chão, Jota recuperou o embrulho:

Deixa que eu abro meus presentes. Falou calmo, guardando o embrulho às costas, junto à janela, apenas a seu alcance.

Foi então que o tio resolveu insistir na qualidade do vídeo, sem avaliar a qualidade do caráter do aniversariante. Pegou um novo embrulho e deu a outra criança para abri-lo. O miúdo ficou zangado, levantou-se e, para sua idade, deu uma bela bronca:

Isso não tá legal! Isso não é justo! E, olhos nos olhos do tio, já demonstrava ser gente.

Por óbvio, não houve consequências pessoais de parte a parte. Somente um suave entrevero familiar. Mas, devo confessar: está registrado em minha memória o instante em que descobri ser pai de uma criança que já bradava por justiça aos 3 anos de idade!

A Família Colonial


Ricardo Kohn, Escritor.

Fiquei bastante feliz com a repercussão da publicação do conto “O Lapidador” neste site. Já há amigos interessados em saber como fazem para obter o livro completo. Na verdade, é um livreto de 136 páginas, contendo apenas dez contos, escritos entre os anos de 1972 e 1980, e prefaciados pela escritora Stella Leonardos.

Este livro de contos nunca foi planejado. Trata-se apenas de um ajuntamento dos textos que eu gostava de escrever, refletindo acerca de minha existência, dos episódios por que passei na vida e das metáforas que talvez houvesse vivido.

Confesso que por enquanto não sei como poderei distribuí-lo aos que tiverem interesse em lê-lo. Mas, enquanto isso, ofereço parte de mais um conto para a apreciação de todos: A Família Colonial. Na verdade não constitui propriamente um conto, mas um extrato de um romance que ainda não consegui escrever. Traz narrativas da visão de uma criança acerca de sua própria família.

A Família Colonial, 1980

“Percebo apenas a estranha ideia de família viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade

Tio Tonico, Seu Antônio, Tonico, Antônio, Seu Tonico e Oliveira eram todos uma só pessoa – Antônio Eustáquio de Oliveira –, dependendo apenas da posição de cada um de seus interlocutores na hierarquia familiar, da qual era senhor e patriarca, o velho solteirão. Para mim foi apenas o frágil e carinhoso Tio Tonico. Mamãe também o chamava assim, variando tão-somente o tom da voz de acordo com os motivos da conversa; em ocasiões especiais, quando os sonhos davam certo, chegava aos agudos carinhosos de “Tuniquinho”, que sempre o transformaram num ditador apaixonado, incapaz de dizer não. Meu pai tratava-o pelo longínquo Seu Tonico; não comungavam por questões de princípio, aliás, todas. Sempre foi um homem severo, mas a débâcle financeira da família tornou-o o rigoroso e formal Oliveira desde adolescência. Ainda assim, apenas para os amigos mais chegados, que eram doze após quase oitenta anos. Tinha uma lista dos verdadeiros amigos (que datilografou um sem-número de vezes, movido pela saudade, pela amargura e a solidão em que tão bem soube se resguardar) e habitualmente lia-a no silêncio de seu quarto, como que recriando aquela inefável riqueza, uma obra de valor eterno. Ocasionalmente, adentrava a sala de jantar, de pijama e óculos, e brandia a lista com a um salvo-conduto, um passaporte afetivo. Nos últimos anos de sua vida este censo particular foi realizado quase que mensalmente, à medida que a lista se tornava póstuma. Parecia-se então com um velho porto de província, cheirando a recordações que nele desembarcaram um dia, à proporção em que suas fundações se fragilizavam com as caracas e o refluxo da maré. Foi, na realidade, o porto da família: tudo nela entrava e saía por intermédio dele, até mesmo as pequenas alegrias, que para mim foram diárias e tanto me marcaram.

A família morava em Santa Teresa, um bairro neocolonial do Rio, que mantém ainda hoje algumas singularidades fascinantes: as ruas de paralelepípedos, o bonde elétrico, as antigas casas à beira da calçada, onde as pessoas nas janelas testemunham o compromisso do bairro com a tradição; as favelas do Morro da Coroa e do Morro dos Prazeres, cujas histórias são menos ricas e festivas do que indicam seus nomes – Coroa e Prazeres –, mas servem para mostrar, ainda que de forma tênue e irônica, a esperança e os sonhos daqueles favelados, que cantam nos atabaques do morro a sanha de seu desespero.

Graças à manutenção de suas características típicas através dos tempos, Santa Teresa possui uma ambiência própria, viva e atuante sobre seus moradores, de tal sorte que mesmo os mais novos habitantes assumem-na sem sentir e tornam-se uma espécie de patrimônio tombado do bairro, que em todos os dias deságua-os eloquente pelo antigo Aqueduto da Lapa, sob a forma de passageiros de tempos idos, quando os bondes rangiam por toda a cidade.

Seu Antônio era um dos donos da Farmácia Áurea, que de áurea tinha muito pouco, além de sua majestosa simplicidade e do espírito nada comercial com que era administrada, facilitando compras, vendendo a crédito e oferecendo serviços médicos, onde o doutor, Tio Otávio, distribuía consultas aos favelados a guisa de caridade. O farmacêutico era o outro sócio. Chamava-se Seu Estevão. Tranquilo, nordestino, gordo, baixo, flácido e de cara larga, assemelhava-se a um sapo-boi. Toda a sua vida resumiu-se entre frascos, rótulos manuscritos, medidas e pipetas. Isto o engrandecia. Gostava de me sentar nos fundos do estabelecimento e observá-lo a manusear toda aquela parafernália do laboratório, transformando unguentos, líquidos e pós em coisas amargas com garantia de cura. A farmácia era o seu convento. Sempre o via caminhando com dificuldade, lento, arrastando enormes sapatos, que de forma alguma correspondiam ao tamanho de seus pés. Eram muito maiores!, como se para dar um passo os pés tivessem que andar três no interior dos sapatos. Realmente tratava-se de um homem punido pela natureza; deslizava cansado pela farmácia, aos soluços (três passos dentro, um fora; três dentro, um fora…), parecendo morrer a cada vez que sumia de vista e ressuscitar a cada vez que retornava com o charuto apagado na boca. Seu Estevão era como um boneco rotundo de borracha e ar que, desgraçadamente, encontrava obstáculos em tudo o que precisava fazer, mas que resolvia com obsessiva calma cada impasse que a rotina lhe infligia. Ao superar o improvável, Estevão decerto aborrecia o destino, que o martirizava em resposta com maiores problemas, até que o matou, esvaziando-o por completo. Em sua vida reclusa foi o mais desajeitado dos heróis anônimos, um sapo comedor de mosquitos, que, com Seu Antônio e Dr. Otávio, compunha uma trinca de imbatível tenacidade. Assim fez parte da família: alguém de quem pouco se falou, mas que sempre esteve presente, mesmo quando era olvidado.

Quando tinha uns seis anos, mais ou menos, lembro-me que em todo fim de tarde aguardava ansioso a chegada de Tio Tonico.  Roía as unhas cheio de expectativa, enquanto na mente via-o a caminho de casa: passos largos e firmes de um espartano, magro, alto, vestindo calças largas e um horrível paletó de cor lilás ou verde, sempre pensativo, com um olhar azul e preocupado em se antecipar à sorte. O toque no portão, o tilintar do sino e o barulho surdo dos sapatos de sola de borracha na escadaria do jardim indicavam-me sua chegada e a certeza de que eu ficaria mais uma vez feliz ao escutar “pode ir ao bolso do tio”. Meu coração de poucos anos acelerava-se, enquanto a mão aflita tateava os bolsos do paletó pendurado na poltrona da escrivaninha, onde encontrava dois chicletes (um de frutas, outro hortelã) e o mais recente Pato Donald ou outro gibi do gênero. O tio tomava então um rápido banho – e foi o que mais o vi fazer, além de pensar em algo muito além e só seu – e ao sair do banheiro, trazia a toalha, a saboneteira e o mesmo cigarro de palha apagado, que com ele fora ao banho. Nos olhos nada além da procura incessante de um novo problema para resolver; no rosto um sorriso cheio de novidades para mim. Poucas vezes o vejo beijando-me naquela época e nunca me vi em seu colo; mas seu amor, embora não me sufocasse, sempre transbordou em mim. Certamente, dentre todos os sobrinhos, eu, primeiro e único sobrinho-neto, fui aquele com quem mais conviveu (morávamos na mesma casa) e o único a presenciar suas mais profundas dúvidas no momento em que aconteciam.

Tonico entregava-se a casa nos fins de semana em que não ia ao Sítio do Seu Ercindo. A casa havia sido uma obra de Seu Antônio em momentos muito difíceis, de tal forma que Tonico nunca a deixou de construir, como se ela fosse um sonho inacabado dentro do pesadelo, que ele tentava superar ampliando o sonho. Eu era seu ajudante nas coisas do jardim, onde ele misturava dotes hortigranjeiros com tendências paisagistas. Realmente, os resultados práticos desta reforma agrária sempre foram terríveis, mas ele amava os canteiros de begônia, as duas caramboleiras entrelaçadas e os vasos de samambaia da mesma forma que a magra goiabeira, a horta, e nos fundos, o galinheiro improvisado e de aspecto fedorento, ainda que sempre limpo. Além de sua mãe, Isadora, minha bisavó, que a tudo aceitava esperançosa, ninguém foi capaz de compreender que em momento algum de sua vida ele tentou ou sequer se preocupou em resolver suas contradições, mas apenas as espargia aqui e ali, despreocupado com estilo, lógica e opinião pública, “três coisas que limitam os homens”, segundo dizia. Era assim que praticava sua jardinagem: livremente, entre frutas, galinhas e hortaliças.

Todos da família antecipavam os acontecimentos quando o tio retornava do sítio: “veremos agora que novidades o Tonico vai plantar na banqueta da varanda…” Não eram estas as palavras, mas eram as preocupações quando ele viajava para o Sítio do Seu Ercindo.

O sítio era relativamente pequeno, uma gleba de terra escondida em Rio Bonito, município do estado do Rio. Tonico seguia para lá em alguns fins de semana. Ercindo era um dos doze, que há muito abandonara a cidade para viver no campo, quase como um índio, livre de aborrecimentos e ideologicamente assumido. Tonico projetava-se nele e só não fez o mesmo por se achar responsável por boa parte da família (e talvez fosse, enterrou sua mãe, cinco irmãos e doze amigos). Por este motivo contentava-se com alguns fins de semana e com o pequeno jardim da casa em Santa Teresa, onde, vestido de bugre, reproduzia as experiências miniaturizadas do sítio a qualquer preço!

Para isso lia tudo o que podia a respeito da agro-coisa que estava em pauta, apenas esquecendo-se (por conveniência) de que a literatura tratava do assunto para fazendeiros e ele só dispunha de “lamentáveis duzentos metros quadrados” de terreno. Desta forma, resumindo aqui e ali, Tonico amenizava as frustrações que obrigatoriamente aconteciam por mais que as adiasse. No sítio, ao contrário, tudo era permitido. Vestiam andrajos e saíam livres, semeando, colhendo, consultando o desconhecido. Assim que, na macega dos laranjais, despiam-se completamente – um lindo quadro: cabeças brancas, botas velhas, anarquistas, olhos, dentes e canivetes – e saboreavam os frutos e investigavam as colmeias e programavam, à sombra da grande árvore, como organizar o paiol de ferramentas e cereais e, bem assim, evitar as entrada de cobras e ratos do mato, que causavam perigo às crianças e roíam sacos de ração e espigas de milho.

Laranjais de Tanguá

Tio Tonico voltava para Santa Teresa aos domingos à noite. Ercindo possuía um pequeno caminhão Ford 1937, e deixava-o em Tanguá, de onde seguia de ônibus para Niterói. Atravessava a baía para o Rio nas barcaças da Cantareira, seguia a pé da Praça XV ao Largo da Carioca; então pegava o bonde Paula-Mattos que o deixava na porta de casa. Eu adorava vê-lo saltar do bonde em movimento. Diria hoje que há algo de épico naquela cena, que me fascina pela magia do desprendimento que encerra. O tio sempre foi assim: alguém que em todos os dias saltava de um bonde andando para a vida.

Durante a semana, após retornar dos trabalhos diários na farmácia, Tonico colocava em prática tudo o que trouxera do sítio sob a forma de sensações: vestia-se como um espantalho e regava o jardim; executava melhoramentos no galinheiro, tapava furos no telhado; tocava poleiros estragados e reconstruía o rego cimentado, por onde escoava os dejetos que usava como adubo na horta e no jardim. Sabia como aproveitar a tudo. Todavia, por mais que se esforçasse, não conseguia experimentar a liberdade anarquista dos laranjais de Tanguá. E isto era doloroso, não obstante sua compreensão de que a nudez urbana certamente produziria efeitos bem diferentes, em especial se o delegado local fosse consultado pela vizinhança sobre o fato (pelo menos naquela época). Mas o conflito ia crescendo, e ele ao centro, entre os bons costumes (!) e a própria felicidade. Assim que, após muito matutar, Tonico descobriu uma fórmula de conciliar seus incontidos desejos com a liberdade alheia: em locais estratégicos do jardim, nenhum vizinho poderia avistá-lo, portanto, que mal faria um pipi eventual ao ar livre?

Seu Antônio era católico, funcionário público de meio expediente, torcedor do São Cristóvão e amargurado pela realidade inóspita e corrompida da política brasileira (se ainda estivesse vivo, aposentado, haveria de concordar que as coisas se sofisticaram: a canalha apurou seus métodos e hoje, além de corrompida, é porca). Oliveira foi um humanista; ateu, radical e quase vermelho. Uma vez que não tinha nada melhor para apresentar como argumento, pautava-se em Cuba e na União Soviética. Como todo apaixonado, era torcedor do Flamengo, embora dispensasse um certo carinho ao São Cristóvão, do qual foi atleta na juventude. Esses dois personagens de Antônio Eustáquio de Oliveira tinham entre si um pacto de vida: Seu Antônio era o sofredor que alimentava a utopia exacerbada de Oliveira; o primeiro era – como diria Oliveira – o protagonista do “típico desastre capitalista”, sempre subjugado e submisso; o segundo, muito politizado, rebelde e anárquico, embora etéreo na prática. Desta forma, pareciam coexistir em meu tio o proletariado e a revolução, numa harmonia perfeita e estável que só teve fim com sua morte.

Seu Antônio foi chamado duas vezes para o serviço militar, enquanto seu irmão mais velho não foi agraciado pelo convite das Forças Armadas. Em muitas ocasiões vi-o falando que servira ao exército por um ano, cinco meses e dezenove dias; em seu rosto, lembro-me muito bem, habitava a incompreensão das crianças, estupefatas que ficam diante de fatos que não alcançam, senão pelos indesejáveis efeitos que lhes causam. Este episódio foi marcante na vida de Oliveira, que odiou fardas enquanto viveu, bem como tudo o que delas proviessem, com especial destaque para os militares, seus afins e correligionários, “todos fascistas e nazistas” no seu entender. Foi assim que durante a 2ª Guerra Mundial, movidos por um sentimento de desforra, Oliveira e seus asseclas transformaram a farmácia numa célula ativa de movimento antinazista. Praticaram toda a sorte de discriminações contra os alemães residentes no bairro. Todavia, como era de se esperar, de forma muita romântica: as famílias alemãs não podiam adquirir remédios (somente em casos de emergência) e nem utilizarem o serviço dos táxis da esquina. Mesmo assim, não fossem os proprietários do armazém próximo serem “simpatizantes de Hitler”, certamente o movimento aliado teria cedido à desmotivação. Em poucos dias houve a adesão favorável dos taxistas, acontecendo em decorrência um sensível enfraquecimento da ação pró-nazista por aquele flanco. Contudo, rapidamente o alegórico exército do armazém respondia ao fogo com uma arma inusitada. Penduraram na sua entrada principal um enorme papagaio, verde e amarelo, endiabrado, que gritava “Heil Hitler!, Heil Hitler!” a cada minuto.

Este incidente marcou de forma definitiva o fim da guerra fria. Estevão excedeu a todas as expectativas dos aliados. Com o olhar esgazeado, verde escuro em consequência das grossas lentes da miopia, forrou os sapatos com restos de uma tribuna e atravessou célere a rua, sem soluços, mas aos tropeços, manco pela falta de hábito em ataques cerrados. Invadiu o armazém, hostes inimigas, botando os bofes pela boca, numa atitude tão inóspita que à falange nazista restou apenas o espanto. Estevão ameaçou, gritou, xingou e quebrou tudo o que pode; depois foi preso por seis meses, incomunicável, fichado como comunista. Assim iniciaram-se as grandes batalhas, mais ou menos acirradas em provocações e xingamentos. Nunca sequer chegaram às tapas, mas, culminaram com o assassinato do papagaio, morto com veneno de rato adquirido no próprio armazém. Obra de um agente aliado disfarçado de mata-mosquitos.

Nasci e fui criado neste clima de ímpetos e grandes paixões que, ainda quando serenas, eclodiam de forma imprevista e irreversível. Tão logo dei por mim, já era tarde. Aos cinco anos de idade estava perdidamente “envergonhado” por Priscila, uma colega do primário em um colégio do bairro. Como nos é preciosa a consciência da pureza de nossa infância! Lembro-me que acontecia uma coisa estranha dentro de mim toda a vez que a jovem chegava com a mãe ao colégio. Uma coisa agradável e misteriosa, que me perturbava a ponto de me desestimular; eu, que já tinha vertigens no escorrega, tonturas no carrossel e medo dos imponderáveis balanços.

Priscila não se importava comigo, tinha o ar esnobe de uma inglesinha; sua irmã mais nova era muito pequena e não usava penteado maria-chiquinha. E, como se tudo isso não bastasse, Priscila era mais alta do que eu, a saxônica das fitas vermelhas! (…).

Paro por aqui, pois este texto completo tem mais umas quinze páginas. Espero que seja lido e crie reflexões.