Ricardo Kohn, Escritor.
Em agosto de 1923, mais um carioca analfabeto nascia no Meyer. Foi batizado com o nome Milton Viola Fernandes. Seu apelido – Millôr – somente aconteceu mais tarde, creio, quando já era notório jornalista, aos 19 anos de idade. Porém, o que importa foram suas contribuições culturais, tanto as de fundo crítico e irônico, como, por vezes, as dotadas de fabuloso nonsense. Durante sua vida escreveu artigos para jornais e revistas, quase sempre acompanhados por seus desenhos ilustrativos; redigiu e adaptou várias peças de teatro; escreveu inúmeros livros, onde destaco “A Verdadeira História do Paraíso”, por sinal, lançado numa noite de autógrafos conhecida como “Noite da Contra-incultura”; traduziu obras de muitos autores clássicos, onde destaco Sófocles, Shakespeare, Cervantes, Molière, Pirandello, Beckett e Brecht; em Buenos Aires, venceu um concurso de desenhos; em Ipanema autoproclamou-se campeão de frescobol do posto 9; se bem recordo, em 1973, Millôr foi promovido a cidadão mineiro pela Câmara Municipal de Conceição-de-Mato-Dentro. Talvez pela grandeza de sua obra, por certo desconhecida daquela vereança simpática.
Este pensador carioca deixou um grande legado cultural, tanto para sua geração, quanto para um futuro incerto, sobre o qual nunca fez qualquer previsão concreta, apenas sutis provocações. Considerava-se relativamente ateu, mas um dia ponderou que “o cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”. Disse ainda que “acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer”. Assim, por dedução, infiro que desejava dizer: “… crer na crença do descrer é ser ateu convicto”.
Não me recordo por quê, mas, certa feita, Millôr escreveu: “no Paleolítico ninguém acreditava no Neolítico”. Porém, inferiu com maior agudeza de espírito quando redigiu seu próprio evangelho. Transcrevo uma de suas verdades virtuosas: “Todo Juiz, mergulhado num julgamento de corrupção, sofre um impulso pra cima igual ao peso dos corruptos por ele inocentados”[1].
Por óbvio, as consequências dessa virtuosidade devem ser debatidas. Interpreto-a como se fora uma aplicação da Física Pura! O “impulso pra cima” acontece na conta bancária do julgador, por força da energia potencial que transforma a “corrupção de seus inocentados” na sua própria “alegria monetária”. A agir dessa maneira, o magistrado acumula “energia cinética” (US$) mais que suficiente para viajar felicíssimo por todos os continentes, comprar mansões, milhares de hectares de terra, iates e carrões, tudo nababesca e escancaradamente. É natural inferir que este “impulso pra cima”, a beneficiar meia dúzia de togados, tem tudo para constituir o motor que dinamiza a miséria de milhões de brasileiros. Até os dias de hoje…
Contudo, mesmo na ausência de Millôr Fernandes, os brasileiros conseguiram alcançar o topo da muralha do século XXI, ainda que sob o fogo da artilharia política, mentirosa e corrupta. Lembro-me que ele publicou uma frase que, embora cômica, era uma sentença condenatória: “As pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”[2].
Não há dúvida que as mentiras são hábito milenar, pelo menos com a idade de Adão e Eva. Porém, nos dias brasileiros atuais, alcançaram um patamar com arquitetura quase perfeita. No meio político, até mesmo o cumprimento “bom-dia” é falso, quando não se trata de violenta praga rogada.
Há 15 anos, os fatos a que a nação assiste são obra de delinquentes: desvio de bilhões de dólares dos cofres da Petrobras; o mesmo a suceder com os da Eletrobras; obras ultra superfaturadas; farta distribuição de propina para “companheiros ”; violência ostensiva nas grandes metrópoles; tráfico pesado de armas e drogas, a culminar com 60.000 assassinatos anuais.
Os “minúsculos três poderes” estão malbaratados; ouço o “salve-se quem puder”. Não fossem as incansáveis ações da Polícia Federal, do Ministério Público e de alguns Juízes da 1ª Instância, a nação estaria vitimada pela “corja corrupta” que se encravou solene no Estado.
Nesse cenário preliminar, sinto-me inclinado a refletir de acordo com a filosofia milloriana. Talvez, se ainda estivesse presente, aos 95 anos Millôr concluísse: “no Brasil, desde o Paleolítico ninguém acreditava no Político”.
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[1] “Saite” Millôr Online, em Bíblia do Caos, sessão 009, item IV.
[2] Revista Veja 334 (29 de janeiro de 1975).
Neste momento lembro uma frase atualíssima do MF: “Já estou vendo a escuridão no fim do túnel!”
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De minha parte, sigo com forte esperança de ter a luz ensolarada a inundar o túnel.
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Excelente !!!!
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Falar sobre e de Millôr é sempre um ato de felicidade.
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