Ricardo Kohn, Escritor.
Este texto é parte de capítulo do livro “Princípios da Filosofia do Ambiente – Como o Ambiente vê o Sapiens”. Nele há dois personagens que conversam: o Ambiente e o autor. Para facilitar o entendimento, indico quem está a fazer cada narrativa, as quais se sequenciam dando lógica ao tema. Prossigo.
Assim fala o Ambiente. Verifico que, desde há 20 mil anos, o sapiens dominante é o único criador de conflitos em minha natureza primordial (physis). Promove violências gratuitas, assassina à esmo, realiza corrupção, comete genocídios, trafica seus semelhantes, pratica escravagismo, faz rebeliões, guerras e revoluções armadas. Com base em reflexões sobre o óbvio, inferi que o alto valor das drogas que o dominante trafica em minha physis, seria mais que suficiente para tirar da miséria os milhões de submissos que ele arrasa, diariamente. Nos dias atuais – é notório –, com as moedas do sapiens corrupto, assisto a muitos dominantes criarem quadrilhas de traficantes que não passam de terroristas.
Por ora encerro minha falação, embora tivesse mais a dizer sobre as ameaças que o sapiens dominante promove em minha physis. Mas esse foi o depoimento a que fui chamado a dar, de teor crítico à conduta da espécie humana que me restou para observar: em grande parte presunçosa, sedenta pelo poder a qualquer custo e, sobretudo, nefasta à minha natureza primordial.
Espero que aqueles que me leem entendam que, sobretudo, não existem exageros ou luxos na minha forma de reger meus bens primordiais. Pois ambos – exagero e luxo – possuem o danoso custo de tudo o que é fútil. Sei muito bem que os poucos sapiens rarus do planeta são meus únicos mantenedores.
O autor. Há um texto de Voltaire que, na visão do Ambiente, fundamenta seu decálogo. Voltaire, imerso na ironia de sua solidão, foi o iluminista que redigiu a seguinte parábola:
“Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será por que falo que julgas que tenho sentimento, memória, ideias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra de tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce, sobe e vai de aposento em aposento, e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobrem nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não sujes a natureza com tão impertinente contradição”.
Muito embora a reflexão de Voltaire esteja restrita aos animais, exemplificados pelo cão, nosso amigo doméstico, interpreto-a como extensiva a toda a fauna silvestre. Que, aliás, o sapiens dominante insiste em denomina-la selvagem.
Em síntese, o decálogo a seguir traduz o que o Ambiente pensa sobre a impertinência do dominante. Dessa forma, quem fala não sou eu, mas as forças da natureza, as quais, por descuido ou inocência, receberam o dominante como filho pródigo. Dessa forma, o Ambiente Terráqueo oferece este decálogo a este dito sapiens, único ser incompatível que lhe apareceu pela frente. Então… Assim fala o Ambiente:
- Quero que tu saibas, dominante: não detenho qualquer virtude filosófica, mas sou, de fato, a única virtude do Universo; aonde quer que eu exista há evolução;
- Assim como o ar, a água, o solo, a flora e a fauna, que formam minha physis, acreditei que tu eras outro resultado de minha evolução; tu conseguiste me enganar;
- Porém, sequer chegaste a ser a necessidade fisiológica de um segundo da minha existência;
- Apesar da degradação sistemática que tu me impões, mesmo após entender quem tu és, continuo a elaborar meus futuros, aleatória e espontaneamente;
- Mas tu causas desordens na minha existência: de graça, ofereço-te ar puro, água límpida e potável, solos saudáveis, flora e fauna exuberantes. Mas o que me devolves afora ar, água e solos contaminados, florestas devastadas e fauna assassinada?;
- Quero que saibas: minha physis é inteligente e possui sentimentos; difere de ti, besta ignorante, destruidor de tudo o que encontras, inclusive dos primatas da tua própria espécie;
- Saibas ainda que, a despeito das tuas emanações gasosas, minha atmosfera logo se refaz, assim como as águas e os solos de meu planeta;
- A despeito de ti, minhas matas erguem-se em volta de teus prédios e logo os rodeiam, a esmigalha-los entre possantes laços de troncos vivos, pois, diante de mim, teus magníficos prédios são ínfimas peças de papel;
- Saibas que minha fauna é frágil e várias espécies poderão ser extintas por ti. No entanto, crio outras somente para demonstrar tua impotência;
- Por fim, nunca te esqueças, sou o único com poder de decidir a hora da tua extinção; tua sorte é que dificilmente gasto energia à toa.
O autor. A partir deste decálogo, percebo que o Ambiente se apresenta como o Criador de todas as coisas, o Senhor Absoluto: visível, concreto, palpável. O que me parece bem parecido com o Deus de crenças, um ser etéreo e invisível, mas que está “ativo” há milênios, por força do pavor antropológico da repetição: viver e morrer aos poucos, diariamente; viver e morrer aos poucos, diariamente…
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