Escadas e escadarias inauditas


Uma experiência pessoal.

A primeira vez que me recordo de ter sofrido o impacto de uma escadaria, aconteceu em 1952. Eu tinha 4 anos de idade. Saíra de casa com minha avó para assistir Tom & Jerry, na sessão matinal do cinema Metro, que ocorria aos sábados.

O Metro ficava defronte ao Largo do Passeio Público, no centro da cidade do Rio. Para chegar até ele, eu tinha que pegar um bonde até o Largo da Carioca, seguir pela Rua Senador Dantas e dobrar à direita. Lá estava o cinema Metro!

Adorei os filmes de Tom & Jerry, assim como centenas de milhares de outras crianças. Na escuridão da sala de projeção, as risadas pareciam ecoar com mais valor, criando a cumplicidade de todos com a alegria. O ânimo dos adultos e de suas crianças era muito diferente naquela época.

Mas para sair de casa e ir à rua, tinha que subir uma escadaria larga, ancorada no muro alto e recoberta de concreto, até chegar ao portão de saída. Até hoje ela está lá, com seus 21 degraus. A casa fica em centro de terreno, é arborizada, fresca e silenciosa. O movimento da rua não perturba à família e aos amigos que a visitam. Não se escutam carros, suas buzinas e vozerios. Parece que se está em um ninho protegido. É assim que as vejo em minha infância, a casa e a escadaria.

Foi dessa forma que percebi o que fez uma escadaria em minha vida. Através dela, escalando-a, eu deixava a calma, a brisa e o silencio que tinha, para enfrentar a multidão barulhenta, sob sol a pino. No entanto, no vão que ficava sob ela, havia vasos de plantas que eu gostava de cavucar a terra para depois regar. Ver novos brotos nascendo, flores com abelhas zumbindo, não têm preço para uma criança!

Aliás, assim disse o poeta, em Mensagem à Poesia: “pelo direito de todos terem uma pequena casa, um jardim de frente e uma menininha de vermelho”. Eu não deixaria de acrescentar que “uma escadaria” também é essencial.

Valparaíso, Chile

Escadaria em Valparaíso, Chile

Aos 5 anos de idade fui apresentado a um portento de escadaria: aberta ao céu, sinuosa, construída de pedras e com 312 degraus. Porém, parte de suas margens laterais é até hoje protegida por murada recoberta de eras.

Constituía o acesso ao casarão de dois andares, onde ficava a escola em que cursei o primário. Portanto, encontrávamo-nos todos os dias úteis e, a cada vez que a percorria pela manhã descobria coisas novas: buracos de camaleão na murada, ninhos de pássaros com filhotes e muitas flores a brotar coloridamente. Não era insensível a esses detalhes.

Mais tarde, já com 7 anos, a escada interna do casarão da escola chamou-me a atenção por dois motivos. Primeiro por ser uma escada em caracol, feita em madeira de lei e com os belos desenhos do Pinho de Riga. Segundo, pelo fato de colegas mais velhos, durante o intervalo do recreio, ficarem sempre reunidos ao seu pé.

Levei algum tempo para descobrir o motivo daquelas reuniões perenes. Mas acabei por conferir, pessoalmente, que eram pernas e calcinhas de jovens professoras da escola, que ficavam à mostra quando subiam ao segundo andar. Também fiquei impressionado, deveras.

Essas experiências vão-se acumulando e modificam a atitude das pessoas. De tal sorte que, aos 10 anos de idade, estando eu na casa de um amigo da escola, notei que havia uma bela escada de madeira. Porém, percebi que ele tinha três lindas irmãs mais velhas. Mas, mesmo quando sentado na saleta, ao pé da escada, jamais consegui sequer levantar os olhos para “pesquisar” qualquer uma delas a subir a maldita escada.

Depois disso, não me recordo de escada ou escadaria que me haja chamado atenção na infância. Até cheguei a acreditar que se tratava de uma fase normal de todas as crianças: gostar de subir degraus. Porém, aos 26 anos, trabalhando em uma empresa de engenharia de projetos, o acaso fez-me uma surpresa.

A empresa precisava de um arquiteto para projetar um canteiro de obras que fosse funcional e, ao mesmo tempo, tivesse visual agradável aos olhos dos passantes. Meu diretor incumbiu-me dessa tarefa. Após alguns contatos telefônicos, selecionei dois escritórios e disse que os visitaria para conhecer alguns de seus projetos já realizados.

O primeiro grupo tinha escritório no centro da cidade, próximo à nossa empresa. Eram cinco arquitetos, a ocupar duas salas pequenas, no 25º andar de um prédio comercial. Três mesas estavam vazias e sem papéis. Pareciam sem uso, pois havia poeira acumulada nos tampos. Não pude ver qualquer arquitetura realizada, mas recebi uma proposta e, em seguida, apenas desculpas esfarrapadas.

Segui de táxi rumo ao bairro de Botafogo, numa rua sem saída e arborizada. O outro escritório ficava em uma pequena casa de dois andares, mais um sótão. Toquei a campainha e fui recebido por um dos três sócios. Ao abrir a porta da casa, o primeiro andar estava um pouco escuro, mas havia uma luz tênue que indicava a escada para o segundo andar. Segui por ela preocupado onde estava a pisar. Mas meus olhos se acostumaram à penumbra e, por fim, veio luz do andar de cima.

A casa era “o projeto arquitetônico” da equipe associada. O sótão havia sido transformado em mezanino, com mesa e prancheta para uma arquiteta sorridente. Sobre sua cabeça havia uma claraboia que fornecia luz ao ambiente. Quadros e vasos de flores adornavam o andar.

Claro que fechamos contrato de serviço com a trinca e a solução que desenharam encantou nosso cliente. No retorno à empresa muitas coisas passaram por minha cabeça. Em síntese, diria que, aos 26 anos, descobri que da penumbra vem a luz, basta seguir na direção certa.

Ao subir escadas e escadarias deve-se olhar para baixo e ver o chão que se pisa, mas é essencial olhar para cima e ter certeza aonde pode-se chegar.