Tentativa de homenagem ao escritor Gabriel Garcia Márquez.
Hotel Suíça. Era um verdadeiro 10 estrelas, a arrasar conforto em qualquer lugar do mundo. Fora um projeto desenvolvido de 2003, desenho de um arquiteto reconhecido no exterior, habituado a rabiscar palácios e igrejas monumentais. Suas obras foram concluídas em 2006, porém, bem afastadas do centro da cidade. Não respeitava as regras do plano diretor, pois estava fora da área reservada à hotelaria, desenho de um famoso urbanista que planejou a cidade.
Resultou um prédio de oito andares, com vista do terraço para o lago e a floresta, de estrutura leve que chegava a pairar no espaço. Era todo envidraçado, cheio de canteiros floridos, com cursos e quedas d’água que circulavam ao seu derredor, sem nunca parar de fluir. Uma obra da engenharia.
Contudo, a água não era desperdiçada. Apenas circulava, através de um simples sistema de vasos comunicantes, movido pelas bombas silenciosas das quatro piscinas do Suíça. Por sua vez, as piscinas tinham “cascatas nas cabeceiras”, que simulavam enchê-las de forma permanente, sem as transbordarem. Essa operação de mera realimentação do sistema não era percebida pelos frequentadores do hotel, todos boquiabertos.
O prédio era circundado por muro de pedra, com 5 metros de altura. Mesmo assim, podia-se contemplar o hotel de vidro. Porém, por motivos óbvios, apenas o interior dos apartamentos não podia ser visto por transeuntes. Mas, além disso, e sem qualquer explicação razoável, a cozinha não podia ser avistada, nem visitada pelos hóspedes. Em suma, devia ser a forma de resguardar a intimidade dos “clientes” e de seus “amigos”. Inclusive, os gerentes do Suíça divulgavam à boca pequena que a “engenharia da intimidade” era a “reserva da casa”.
No entanto, suas dependências de uso coletivo eram todas visíveis, embora sempre turvadas. Aos curiosos não era possível reconhecer as feições das pessoas que se cumprimentavam no interior do hotel, mas viam todo o movimento interno do Suíça, apenas como se “clientes” e “amigos” fossem fantasmas sem cara, os chamados “descarados”.
Desse modo, era possível ver imagens difusas do belo restaurante, adornado por um bar para soberanos, o salão de jogos de cartas, as máquinas de caça níqueis enfileiradas. Até mesmo sua esplêndida adega era quase translúcida. Era provida de divisórias feitas com cristal importado, que mantinha a temperatura interior regulada e não permitia a entrada de luz e calor que afetassem a qualidade das bebidas. Todas, com raríssimas exceções, importadas dos melhores centros produtores do mundo.
Os “clientes” do Suíça. Os frequentadores do hotel não moravam na cidade. Provinham de outros estados ou mesmo de vários países. Pouco se sabe a respeito deles, além do fato de que sempre estavam lá a fazer “negócios”. O Suíça tomava todas as precauções para que não fossem identificados por intrometidos.
Em linhas gerais, eram pegos por limusines negras e blindadas, com vidros recobertos por uma película escura que impedia a visão do seu interior. Os “clientes” eram recolhidos na pista do aeroporto internacional, ao lado de seus jatinhos particulares, sempre taxiados ao largo dos terminais. Por isso, no aeroporto era proibido entrar com luneta ou binóculos.
Dessa forma, o máximo que se sabia é que chegara alguém para o hotel, pois via-se uma dessas limusines a trafegar pela cidade, com quatro batedores mascarados, ostensivamente armados. De certa maneira, lembravam os “Black Blocs” de hoje, só que sempre a dirigir potentes motocicletas.
A chegada dos clientes era realizada através de uma via interna lateral, que os desembarcava em um lobby de mármore de Carrara, situado aos fundos do hotel. Porém, essa via era protegida por mais vários seguranças, também armados, que impediam a qualquer curioso aproximar-se e bisbilhotar o “visitante”. Ficou-se a saber, após a extinção do Suíça, em 2009, que seus seguranças eram lutadores de MMA, muito bem treinados e violentos.
Os “amigos” dos clientes. O procedimento do Suíça para conduzir os “amigos locais” até seus clientes era similar em termos da segurança. De resto era distinto, de forma a não chamar a atenção dos moradores da cidade. Usavam possantes caminhonetes blindadas, de cores variadas, mais o aparato de escurecimento dos vidros.
Todavia, o local em que os “amigos” eram recolhidos variava a cada “encontro de negócios”. E nunca era na instituição em que trabalhavam. Da mesma forma, eram desembarcados no lobby, ao fundo do hotel. Era dessa maneira que o Suíça garantia sigilo absoluto dos “encontros de negócios” que somente se realizavam em suas dependências.
A vizinhança do Suíça. A curiosidade da população da cidade em desvendar esse “segredo urbano” foi de tal ordem, com tal intensidade, que um mês após a inauguração do hotel, começou a nascer uma espécie de vila à sua volta. Primeiro chegaram as barracas de campanha; depois foi sendo construída uma favela de barracos, um oratório, um bar e, por fim, um prostíbulo. Em um ano a população dessa “vila livre” tinha mais de cinco mil moradores e fedia pra dedéu.
Não se sabe bem o porquê, mas alguns partidos políticos da base aliada ficaram preocupados com a invasão das terras públicas. Seus políticos mais eminentes fizeram pronunciamentos agressivos no Congresso Nacional contra o que chamaram de “barbaridade urbana”. Mas, por incrível que pareça, todos a favor da propriedade privada, da suntuosidade do célebre “hotel de negócios”.
Porém, logo em seguida, o poder executivo manifestou-se para a garantir a legitimidade das invasões e, em uma resposta arbitrária (como sempre), fundou dois movimentos, os do “sem-terra” e os do “sem-casa”. Vale ressaltar que, mais tarde, num ataque desenfreado de populismo, esses movimentos tornaram-se o principal programa do governo, embora tenham sido inócuos para os esquemas pretendidos. Tanto é verdade que a “vila livre” permaneceu, cresceu e virou quase cidade, tal como um satélite a orbitar o “hotel de negócios”.
A reação dos “negociantes”. De fato, nunca se soube quem eram os proprietários do Hotel Suíça. Sobretudo, por que se tratava de uma sociedade anônima, com algumas evidências de que sua “sede laranja” estaria localizada no paraíso das Ilhas Virgens. O que, afinal, dava-lhe o traço religioso da piedade.
Mesmo assim, piedades à parte, os proprietários estavam furiosos por que perdiam negócios com a existência da favela-satélite que cercava e constrangia o hotel. Ela atuava como uma sucuri gigante a apertar com seus potentes anéis o bolso dos sócios do hotel.
Por outro lado, como os “clientes” estavam a reduzir as “visitas”, seus “amigos” também não mais conseguiam os “negócios fáceis” de sempre, com que se locupletavam.
Assim, houve um enlouquecimento coletivo, até que um “cliente” sugeriu uma reunião de todos os envolvidos: os donos reais do Hotel Suíça, todos os “clientes” e seus respectivos “amigos”. Nesse encontro seria decidido o que fazer com a sucuri gigante, causadora de todos os males por que passavam.
Todos concordaram com a sugestão. Todavia, um gerente do hotel considerou que cuidados especiais deviam ser tomados para que a imprensa não descobrisse aquela reunião histórica. Mas não disse quais seriam esses cuidados. Porém, como o risco de divulgação era elevado, um dos acionistas do Hotel Suíça acabou por firmar a solução final:
─ “Não vamos chamar o evento de reunião ou encontro, mas de ‘Ceia da Assunção’. O hotel abrirá suas portas para todos os clientes e amigos. A ceia terá início às 2:00 da madrugada da próxima segunda-feira, quando a cidade já estará em silêncio, sem imprensa. Nosso chef vai preparar, como prato principal, lindas postas de bacalhau que importei da Noruega. Além disso, a adega estará livre desde a entrada e o primeiro prato. Serviremos um prato leve de salmão norueguês defumado; de entrada, caviar russo, escargot e ostras francesas”.
A Ceia da Assunção. Os jatinhos começaram a aterrissar por volta da uma hora da manhã. Era uma noite escura de quarto-minguante. A iluminação das ruas fora reduzida, pois o país enfrentava mais uma crise de energia. As limusines negras, silenciosamente enfileiradas, sem os batedores, chegaram tranquilas ao hotel. A cidade e a “vila livre” estavam adormecidas.
O hotel não tinha luzes acesas. Um eventual passante curioso não poderia ver nada da rua. Os próprios participantes da “Reunião Sucuri Gigante”, conforme ficou conhecida, acharam estranho. Porém, foram surpreendidos com a existência de mais um elevador no lobby, que nunca haviam visto, dada sua posição afastada dos demais. Entraram no elevador e saíram na mais magnífica e espaçosa cozinha que um hotel poderia ter naquela ocasião.
Tinha cerca de 300 m2 bem aparelhados, inclusive com um sistema de câmeras de segurança que oferecia imagens e áudio do interior do hotel e de sua vizinhança. Continha um espaço de 100 m2 reservado para a guarda do hotel, que fora transformado em sala de reunião para aquela oportunidade. Foram recebidos amistosamente pelos três sócios anônimos, que não conheciam até então, acompanhados pelo chef de cuisine, o francês, monsieur Wagallume de Tonnais.
Sentados à mesa, com espaço para 50 pessoas, os acepipes começaram a ser servidos por vários garçons, todos sorridentes, mas silenciosos. As cabeceiras foram ocupadas por sócios do hotel. Então, o dono da solução levantou-se e dirigiu-se aos presentes:
─ “Sem delongas e rapapés, quando necessário, tratem-me por Ostentor. Para não perdermos tempo, recomendo que não façamos debates sobre o destino que vamos dar à nossa tal vizinhança. Concluo que somente temos duas opções: ou fechamos o hotel e encerramos nossos negócios no país ou demolimos a favela”.
O chef de Tonnais preparava o prato principal, mas aguardava a solução que seria dada pelo grupo. E Ostentor continuou:
─ “Mandei imprimir uma cédula de voto com as duas opções. Os senhores só precisam marcar com um ‘xis’ a que preferem que seja executada. Nada melhor para legitimar uma decisão do que um plebiscito social, não acham?”. E soltou uma breve gargalhada.
O terceiro sócio distribuiu as cédulas a todos os presentes. Em dois minutos a votação estava encerrada. Ostentor pegou a “urna” (uma cesta) e anunciou o resultado da contagem.
─ “Senhores, silêncio. Decidimos por unanimidade demolir a favela! A minha segurança vai executar essa ordem. Estou com fome, vamos às postas de bacalhau norueguês e aqui não se fala mais nisso”.
Todos se levantaram e abraçaram-se. Cumprimentaram com acenos de mão ao Ostentor, que acabara de se tornar líder absoluto daquele esquema de negociantes.
Comeram e beberam a mais não poder. Consumiram o salmão defumado, o escargot, o caviar e as ostras chatas e carnudas da Bretanha. Foi então que o próprio chef veio à mesa e serviu a Ostentor. Os demais foram atendidos pelos garçons, mas continuaram a se fartar.
Em agosto de 2009, amanheceu um dia lindo e ensolarado. Quando a polícia e os legistas chegaram, em resposta a um telefonema anônimo, encontraram todos mortos na cozinha do hotel, inclusive a guarda de segurança e os motoristas. Um dos legistas, o mais experiente, disse que tudo indicava que houvera um envenenamento em massa, pela baba fétida que saía da boca dos defuntos, decerto recém abatidos.
Todavia, do outro lado da rua, impedidos de se aproximarem pela ação da polícia, estavam os aflitos mais curiosos da vizinhança, interessados em saber o que acontecera no hotel impenetrável. Dentre eles, se destacavam o francês e sua mulher, moradora de um barraco na vila. Os dois estavam tranquilos.
Ricardo Kohn, Aprendiz de Escritor.