Zik-Sênior, o Ermitão.
Em 1916, na hora da saída do colégio, uma professora disse a meus pais: “esse menino tem um grande potencial”. Eles ficaram tão felizes, que fizeram uma festinha em casa para eu convidar três amigos. Foi servida uma torta de chocolate, regada a Coca-Cola bem gelada. Vale recordar, naquela época existia Coca-Cola em garrafa pequena, feita de vidro verde claro matizado.
A festa foi muito boa, brincamos o dia inteiro: lançamos peão na roda, jogamos mata-a-mata com bola de gude no chão de terra, fizemos várias guerras de carambola e, a partir do meio da tarde, empinamos pipa e papagaio de cima da laje. Foi memorável, ficamos imundos.
De toda feita, levei alguns anos para entender o que seria ‘ter um grande potencial’. Era ainda pequeno e, afinal de contas, a professora parecia meio assanhada para o lado de papai. Podia haver alguma outra intenção dela, sei lá. Quem sabe imaginava que o pai tinha um ‘potencial enorme’?
Porém, foi em 1920, já com 12 anos, que ouvi pela primeira vez a frase que ficou notória: “o Brasil é o país do futuro”. Foi dita numa aula, pelo então professor de História, por motivo que não lembro. Mas recordo-me muito bem que, para ver se entendera suas palavras, insinuei: “O senhor quer dizer que o Brasil tem um grande potencial?”. Ele confirmou. Foi assim que, pela lógica intuitiva, associei tudo o que se dizia ser potencial a algo que ocorreria no futuro.
Hoje, após longas experiências da vida, compreendo que o substantivo potencial refere-se a um conjunto de fatores, próprios de uma pessoa, empresa ou país, que em algum momento do futuro, pode tropeçar em ventos favoráveis à sua evolução.
A meu ver, potencial não é sinônimo de dúvida, longe disso. Mas sempre será, digamos, uma promessa de vento futuro. E promessas só são válidas se forem bem executadas, úteis às pessoas que rogam por verdadeiras mudanças. Não são simples trocas de ‘seis por meia dúzia’.
Um século mais tarde, na faina diária, trajando meu surrado macacão de brim, ainda escuto falarem que o ‘Brasil é o país do futuro, com grande potencial’. Parece que não se mancam! Entram e saem alcateias de canalhas do governo e a safadeza política segue a ser usada para amestrar a população ignorante. É incrível, mas a sociedade brasileira já acreditou em cem anos de promessas ao vento, sobretudo, nos últimos 12 anos, quando essa prática recrudesceu.
Restou um fato: a qualidade da vida futura tem sido uma miragem perturbadora para a maioria dos trabalhadores. Isso sem falar dos inúmeros aposentados, dependentes e idosos que, mesmo a viver em situação precária, pensam ser capazes de conter a ação da quadrilha hospedada no planalto central. É lá que fica instalada a sede do Bordel do Poder. Tola esta pretensão: nós, idosos e assemelhados, não somos ameaça alguma à corja que depreda o Estado e a Nação.
Mesmo diante de cenários políticos e econômicos ruins, não tão desgovernado quanto o atual, durante 98 anos eu dormi muito bem. Cinco horas por dia sempre foram reparadoras para prosseguir com o amanhã. Nunca tive insônia ou pesadelo, nem mesmo durante o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão).
Não há dúvida, até fiquei excitado com a condenação de poucos membros a quadrilha, mas a pressão arterial não subiu. Sempre, às 11 horas da noite, punha a cabeça no travesseiro; em segundos estava relaxado e adormecia pesado. Com certeza devo minha senioridade em parte a isso.
Porém, com os primeiros sinais de ‘ensaio político’ para o ‘apocalipse pela corrupção’, iniciado a meus olhos pelo ‘chefe do Bordel’ em 2009, comecei a perceber que meu sono já não era mais o mesmo. Meu corpo precisava de mais uma hora de descanso diário. Passei a acordar mais tarde, às 5 da manhã, mas pronto para outra jornada de trabalho [1].
Por isso, não dei a devida atenção ao pesadelo renitente que passara a ter. Em síntese, descrevo-o assim: “havia um grande felino que, ameaçadora e esfomeadamente [igual ao chefe do Bordel], cercava a casa durante todas as noites; eu o avistava através das janelas e portas. Em noites de lua cheia, lá estava ele a rosnar e babar, olho no olho, a querer me devorar”.
Mas de súbito, em março de 2010, antes das campanhas eleitorais se iniciarem, o seriado de pesadelos encerrou. Porém, óbvio, não me sentia tranquilo após quase um ano de tortura. Procurei meu velho amigo Hélio, notório psicanalista, mas soube que falecera fazia tempo. Dessa maneira, conforme aprendera, eu mesmo tentei esclarecer as causas do seriado.
De acordo com minha ignorância na matéria, inventei um método a que chamei ‘análise por exclusão’. Primeiro retirei as causas que julgava serem inconcebíveis, por exemplo: minha família, amigos remanescentes, o quintal com mata nativa, a casa, o quarto de dormir, a alimentação e até mesmo a qualidade do colchão.
Porém, foi na identificação das causas do pesadelo que me encalacrei. Permaneci acordado durante cinco dias seguidos, rabiscando teorias no papel, mas nada me pareceu razoável. Ao fim, exausto, tomei uma ducha fria e dormi prostrado. Então, tive um sonho esclarecedor, uma resposta (exata?) do autor em pessoa: meu inconsciente. Disse-me ele algo assim:
“Desde que você nasceu, já estava gravado em seu Arquivo de Esperanças que ‘o Brasil é o país do futuro’. O pesadelo decorreu das milhões de regravações que você tem feito nos últimos 12 anos. Mostram sua falta de apreço às práticas dos Chefes de Bordel eleitos, bem como de suas inomináveis quadrilhas. Não me cabe interpreta-las ou discuti-las; apenas regravá-las. Todavia, há graves conflitos com outra gravação, também original – ‘o Brasil tem um grande potencial’ –, registrada no mesmo Arquivo. Você acredita nisso há 106 anos, mas, ao contrário, assiste pasmado ao país ser mutilado por seus dirigentes, empobrecer de forma assustadora, e caminhar solene para a completa devassidão moral. Dessa forma, nasceu o felino corrupto que, de maneira ostensiva, ameaçava seu consciente durante as noites de descanso. Afinal, já que você optara por lutar contra o apocalipse pela corrupção, teria de ‘matar‘ o felino“.
Ao acordar redigi o sonho, da forma acima transcrita. Era o que recordava. Mal sabia eu que ainda haveria de enfrentar, por pelo menos mais 4 anos, a colheita de frutos desse apocalipse, podres e sem qualquer potencial. Mas aguardo confiante que seja deflagrada uma nova Ação Penal. Que dessa vez ela seja fulminante!
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[1] A propósito, sou ferreiro-escultor, formado pela prática de meus avós. Forjo estruturas delicadas de ferro, uso madeira antiga, e monto camas, mesas com tampos com pedras de mármore colorido, armários, estantes, cadeiras e coisas do gênero. Tudo é rústico e, modéstia à parte, com bom acabamento.