Animália


Ricardo Kohn, Escritor.

A violência na sociedade brasileira apresenta tendência de se generalizar. São tantos casos de agressões brutais e gratuitas, que ocorrem diariamente em cidades e campos, que podem se transformar em “comportamentos normais e aceitos”.

Parece tratar-se de outra demonstração empírica da Lei dos Vasos Comunicantes. Diferencia-se apenas por não usar líquidos ou gases (fluidos), mas atitudes tidas como humanas, porém dignas somente dos antigos povos bárbaros, que destruíam a tudo e todos por onde passavam.

Torna-se necessário relembrar como se comportam os vasos comunicantes, com uma breve revisão da Física. Têm-se vários recipientes interligados, cada um com formato e volume diversos. Coloca-se um líquido homogêneo em qualquer um deles e vai se observar que ele se distribui pelos demais. Uma vez estabelecido o equilíbrio físico entre o líquido e seus recipientes, sua altura final será a mesma em todos os recipientes. Esse experimento, realizado pelo físico belga Simon Stevin em laboratório, data do início do século 17, e demonstrou o que ficou chamado Teorema de Stevin.

Imagem dos vasos comunicantes

Imagem dos vasos comunicantes

Isso ocorre porque a pressão exercida pelo líquido no corpo dos recipientes depende apenas da altura da coluna d’água. Os demais fatores de cálculo da pressão (densidade do líquido, pressão atmosférica e aceleração da gravidade) são constantes para casos dessa natureza.

O experimento empírico na Nação

Os recipientes de uma nação são a sociedade civil, suas empresas (públicas e privadas) e o Estado. Em razoável medida funcionam tal como vasos comunicantes, através dos meios e sistemas de comunicação de que dispuserem. O principal fluido que esses meios distribuem aos recipientes da nação é a informação útil, prática e culta, que visa a ampliar a educação de seus cidadãos, de forma a que continuem livres.

Embora essa tese possa ser considerada utópica, há várias nações que sempre caminharam nessa direção. São consideradas as mais desenvolvidas, pela qualidade dos serviços que oferecem às suas populações.

Como é normal de se prever, podem apresentar eventuais quadros de desvio, mas que logo são devidamente sanados pelas instituições formais do Estado. Justo por isso, seus Índices de Desenvolvimento Humano [1] são os mais elevados do mundo.

Porém, o inverso também ocorre. Ou seja, através do recipiente do Estado, o governo derrama fluidos incontroláveis que são expressivos quadros de desvio, no mais das vezes sistemáticos: atos de corrupção, assassinatos políticos, desvios e lavagem de dinheiro, evasão de divisas, associações criminosas, envolvimento com tráfico de drogas, enfim, tudo de ruim que se possa imaginar. Raras são as vezes que o Estado possui condições de impedir que esse fluido imoral nivele-se nos demais recipientes das nações acometidas pela barbárie política. Até porque ele e suas instituições encontram-se aprisionados, asfixiados.

Quando esse fluido se propaga e nivela-se no recipiente da sociedade, a educação deixa de existir, surgem revoltas, motins, vandalismos, linchamentos, insurreições, guerras civis e até “assassinato com latrinada na cabeça”. Os casos políticos que vêem sendo vivenciados pelo mundo são inúmeros. Constituem a confirmação prática dos vasos comunicantes na sua forma mais desastrosa.

A imposição ferrenha de ideologias fundamentalistas e de dogmas quase feudais, visando a locupletação de “parceiros dentro do Estado“, constituem as mais estúpidas agressões que uma sociedade livre pode receber. O cidadão que pensar de forma diversa será duramente punido. Merecerá a forca ou será linchado em praça pública por “agentes do governo”!

……….

[1] Para quem desejar a visão mais detalhada de como foram classificados os países segundo seu IDH de 2013, segue a lista publicada pela ONU. Clique aqui.

Égua Xucra


Ricardo Kohn, Escritor.

Foi quando uma menina de vermelho
Surgiu no vale, correndo, correndo (…)”
Vinicius de Moraes.

Imagine um vale verde. Se puder dê-lhe todas as cores de seus sonhos e de seu mais intenso prazer. Imagine um riacho, a formar um pequeno lago, que espelha a enorme sede de sonhos, da fantasia e do prazer. Imagine que tudo isto é real. Que mesmo a fantasia é real. Pois feche os olhos e escute… Sinta a umidade do ar, sinta a brisa verde do vale a beijar seu rosto. Escute alguém que se aproxima… Um ser vivo, tenso e solitário, consciente de que sua nobreza é selvagem. É uma égua, uma potranca. Corre muito. Corre para o lago onde saciará sua sede. Sua crina é cheia e áspera e derrama-se sobre seu pescoço. A cauda é arqueada, ondulante, de rara beleza, flor noturna e íntima. Carrega em si o cio eterno, a excitação do vale. O suor branco delineia seu corpo com o brilho líquido de enormes lágrimas. As lágrimas que não sente, mas que com seu êxtase de fêmea a condecoram, como se fossem estrelas prematuras. Seus músculos estremecem, femininos, longos e bem delineados. Estremecem em harmonia, numa dança sutil, o preâmbulo da sensualidade que aguarda, embora não saiba. E todo o seu corpo fala com a natureza. E exala seu cheiro, que é forte e cálido, que se mistura às flores, à terra molhada, à pureza do ar.

O fim da tarde alonga-lhe a sombra no lago. E n’água, outro ser dela se ergue: seu macho, negro e etéreo como o amor selvagem que dela transborda, da potranca verde do vale.

Suas narinas dilatam-se desejando cheirar este sonho. A potranca olha a água e bebe da água, bebe a fantasia, o sonho, o potro negro sombreado. Sua cauda se agita ondulada, o corpo a estremecer com o prazer de sua infantil solidão. Impulsiva e selvagem, relincha e empina, pisando e repisando a água a seus pés. Os respingos ferem a superfície do lago e um feixe de espelhos mágicos se forma, a refletir seu garanhão em infinitas imagens. Seu olhar está impregnado, absorve loucamente todas as imagens. Seu interior agora é pleno. Ela possui força para penetrar no lago. E o faz. E todas as formas convergem para ela, entram em seu corpo. Ela experimenta cada imagem que a atrai. E atrai a todas, a unificarem-se em um ato universal.

Saciada, parte. Voltará ao seu mundo. Lá deixou suas marcas, seu cheiro, seu potro negro. E com ele, seu prazer, seus sonhos, suas ansiedades. Quando retornar, os que a virem terão afinidade, pensarão como é bom tê-la de novo. Sentirão ainda uma coisa estranha, uma espécie de saudade que se guarda de uma amiga que esteve longe.

Égua Xucra é uma parábola de 1977, publicada no livro de contos O Lapidador”, autoria de Ricardo Kohn, 1982.