A cidade do Rio nasceu do ouro e terminou cunhada pelo lixo.
É triste, mas é verdadeira essa afirmação. Não falo de seu nascimento há 448 anos, quando Estácio de Sá fundou a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – 1º de março de 1565. O lixo daquela época eram as forças invasoras francesas. Porém, sem qualquer cerimônia, foram “varridas” definitivamente pelos portugueses.
Na verdade, falo do Rio a partir de meados do século 19, quando a cidade acreditava que poderia tonar-se uma Paris Tropical. Falo da cidade no início do século 20, mesmo com a demolição de prédios históricos realizada pelo prefeito Francisco Pereira Passos (de 1902 a 1906), muito bem documentada no livro “O Rio de Janeiro do Bota-abaixo” – fotos de Augusto Malta, textos de Marques Rebelo e Antônio Bulhões.
Nos quatro anos do mandato de Pereira Passos o centro da cidade virou “uma verdadeira lixeira de obras”. Parecida com a que vemos hoje em vários de seus bairros. No entanto, naquela oportunidade, muitas obras resultaram na valorização dos equipamentos públicos do Rio e na manutenção de sua limpeza urbana no período pós-obras. As fotos que se seguem permitem conferir esse fato: a Paris Tropical e sua então urbanidade.
Theatro Municipal, construído de 1905 a 1909 – Foto de Marc Ferrez
Ao lado direito da Cinelândia, a Biblioteca Nacional, em estilos art noveau e neoclássico, construída entre 1905 e 1910 – Foto de Augusto Malta
Palácio Monroe, inaugurado em 1906 como pavilhão destinado a exposições. Tornou-se depois sede do Senado Federal. Ao fim, por falta de inteligência, foi demolido para passagem de uma linha do metrô – Foto de Augusto Malta
O estilo francês do Theatro Municipal e da Escola Nacional de Belas Artes – Foto de Augusto Malta
Essa urbanidade, ou civilidade, como queiram, prosseguiu a existir durante muitas décadas. Lembro-me que na gestão de Gastão Henrique Sengès e sua equipe, criando e dirigindo a Companhia Municipal de Limpeza Urbana – Comlurb, de 1975 a 1979, a cidade do Rio era limpa.
Avenida Gastão Sengès – a placa esta mal redigida
Gastão Sengès e seu sucessor, Fernando Botafogo, ambos engenheiros civis e sanitaristas, conheciam a fundo toda a cidade do Rio e a cultura dos cariocas. O que mudou depois deles? Foi a Comlurb que perdeu a qualidade de seus serviços públicos ou foi o Rio que ganhou “novos pseudo-cariocas”?
─ “Que raios me partam, o que aconteceu com a cidade?”
Prefeitos do Município do Rio
Desde de 1889, o Rio já teve 55 prefeituras (nomeadas e eleitas) e, durante a transferência da capital para Brasília, teve cinco governadores.
Acho que é possível entender o lixo nas ruas da cidade em função da capacidade pública de seus prefeitos. Interessam-nos apenas os titulares a partir de 1975.
Marcos Tamoio e Israel Klabin foram prefeitos do Rio durante as gestões de Sengès e Botafogo à frente da Comlurb. Por sinal, mesmo que nomeados pelo governo do estado, suas gestões “não sujaram a cidade”. Ao contrário, foram bons prefeitos, dignos de nota. Eram democratas na expressão da palavra e souberam gerir com competência as instituições municipais que coordenavam.
No entanto, a partir de 1980, não podemos garantir a mesma habilidade para os sucessivos prefeitos que pretenderam ordenar a cidade: Júlio Coutinho, Jamil Haddad, Marcello Alencar, Saturnino Braga, César Maia, Luiz Paulo Conde e, finalmente, Eduardo Paes. As cores distintas grafadas nos nomes representam minha opinião acerca da principal habilidade pública de cada um. Deduzam à vontade…
Nas suas gestões municipais a cidade do Rio foi ficando cada vez mais suja e a cultura da sociedade perde desde então sua gradação de urbanidade. Ser limpo e civilizado deixou de ser um valor da sociedade carioca. A ponto de estimular o atual gestor público, senhor Eduardo Paes, promover uma desordem legal para punir cidadãos com baixo nível de civilização.
A “lei do lixo”
De início devo dizer que, dada a brutal tonelagem e odores da sujeira jogada diariamente nas avenidas, ruas e praças da cidade, não vejo outra medida cabível que não seja a da dura repressão legal. No entanto, o ato de baixar uma lei punitiva cheia de inconsistências e absurdos, é tão criminoso quanto jogar lixo no chão da cidade. Tenho algumas questões e gostaria de receber suas respostas, senhor Prefeito:
- Porque as latas de lixo foram reduzidas de tamanho? O senhor tem certeza que dentro delas cabe todo o lixo que perambula pelas ruas da cidade?
- Porque a localização dessas latas não é padronizada, por exemplo, nas esquinas de todas as vias da cidade?
- O senhor sabe que os garis são, desde há muito, respeitados pelos cariocas. Contudo, sua lei os coloca como “dedos-duros” da população, compondo uma trinca com um guarda municipal e um policial militar. Gostaria de saber se o senhor não acha que os está a constranger?
- Por acaso, a prefeitura vai aumentar o salário dos garis por esta nova função que lhes foi imposta?
- Sobre sua guarda municipal, todos sabem que ela gosta de propina. Será que os garis são colocados ao lado deles para vigia-los?
- Qual a real função dos garis e dos guardas municipais nesta posição? Por acaso os garis serão certificadores do lixo?
- Ou os garis viraram os agentes policiais da sua corrupta guarda municipal?
- Pelos acompanhantes e suas histórias policialescas, os garis vão correr graves riscos sem receber um incremento na remuneração ou vão ganhar participações nas multas aplicadas? O seu sistema público chama a isso de “aumento de produtividade”?
- Imagine que eu tenha jogado um palito de fósforo ou uma guimba de cigarro na calçada. A trinca me multa e afirma que é um flagrante! Pergunto: tem foto ou vídeo para provar materialmente que fui eu que joguei o palito?
- E se, para “aumentar a produtividade”, a trinca resolver multar vários indivíduos, sem que tenham jogado qualquer lixo na rua?
- Uma criança de 9 a 12 anos, caminha sozinha para a escola e, distraída, joga uma folha amassada na rua. O que a trinca fará diante dessa situação? A criança não tem CPF e não pode ser levada para uma delegacia policial. Será conduzida para um “reformatório-escola”? Ou a trinca baterá um pênalti na bunda da criança?
O Rottweiler amigo
Poderia fazer muitas outras perguntas, em especial sobre como a trinca abordará e multará um “cidadão lixento, forte e violento“, que sempre traz com ele um Rottwailer amigo, conduzido por uma frágil guia e coleira.
Já imaginou, senhor Prefeito rosinha, quando cair sobre a cabeça da trinca um envelope de papel higiênico usado? Acho que vai ser jogado do décimo andar, num edifício de 200 apartamentos. O que farão? A quem multarão?
Minha última questão é para saber se a prefeitura do Rio já calculou quantos PM, Guardas Municipais e Garis haverá de soltar pelas ruas da cidade para fazer valer a “lei do lixo“.
Outro risco, que hoje se encontra vulgarizado, é a divulgação pública do número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) de qualquer cidadão. Trata-se de documento que precisa ser sigiloso, pois é usado em operações financeiras. E, por sinal, nada tem a ver com jogar lixo na rua.