Zik-Sênior, o Ermitão.
“Cazzo, afinal acabou a primeira reunião anual da Organização Nacional de Quadrilhas e, graças à sorte, ainda estou aqui, vivo e inteiro. Como planejado, ‘Dra. Dementowa’ esteve no comando dos 40 quadrilheiros da ONQ, alguns deles inexperientes, novinhos em folha”.
Dois dias antes do evento, o diretor da empresa fantasma que “patrocinara” a reunião, o Taveira, chamou-me a seu escritório para uma conversa. Não sei como me descobriu. Mas, ao fim do monólogo, e a olhar bem firme em meus olhos, disse-me, em tom grave e clandestino:
─ “Carlos, você vai trabalhar numa reunião especial que organizei. Além de entrar mudo e sair calado, sua função é somente mostrar essas placas para que a Dra. Dementowa cumpra com sua retórica usual. Faça assim, olhe aqui, veja bem, sobre este tripé ponha cada placa, nesta exata sequência. Por esse dia de trabalho vou te pagar ‘8 mil dólares cash’, sem nota. Entendeu?”
Temi um pouco em dar uma resposta imediata, mas como não queria perder a chance de ganhar ‘aqueles dólares’, em 4 horas de trabalho, arrisquei:
─ “Sim, seu Taveira, entendi bem. Sou engenheiro e, embora desempregado, já fiz uns bicos na televisão do governo. Lá eles chamam essas placas de tele-prompts”.
Preparação
Foi assim que aceitei o dito trabalho, com eventuais riscos que então desconhecia. Mas, pelo fato de receber tanto dinheiro para trabalhar tão pouco, precisava obter alguns detalhes: qual o motivo da reunião, que apito tocava a tal Dementowa e quem seriam seus ouvintes. Em suma, precisava saber quais os resultados esperados da dita reunião secreta – “entrar mudo e sair calado”, dissera-me Taveira.
Como tenho amigos no FBI brasileiro, recorri a um deles para informar-me. E foi bem mais fácil do que eu pensava. “Estela Nirvana Dementowa” tinha uma longa ficha corrida nas polícias do mundo civilizado.
Não possuía qualquer título de doutora, porém, há mais de 15 anos é “testa-de-ferro” do cartel de drogas boliviano, o mais poderoso produtor de cocaína da América Latina. Por sinal, chamam-na de “Dra” para que, perante o público, aparente ser a dona do poder operacional no cartel, em terras brasileiras. Uma questão, digamos, de “marketing político“. E ela adora isso.
Na verdade, Dementowa é uma simples executora das ações do cartel dentro do território brasileiro e talvez sequer saiba quem são os estrategistas. Todavia, com suporte técnico de uma agência internacional de segurança, é monitorada 24 horas por dia. É possível, penso eu, que em breve todos acabem presos e julgados ou, de preferência, extintos da face da Terra.
Sobre os ouvintes de Dementowa – os 40 quadrilheiros – recebi poucos informes. Apenas que são indicados por delinquentes importantes na hierarquia do cartel. Ela apenas os aceita conforme chegam e pendura cada um na “organização”, como lhe é determinado.
O dia do ‘trabalho’
Cedo pela manhã, uma camionete negra, blindada, pegou-me na esquina combinada. Viajei no banco central, ladeado por dois jagunços grandes e mal encarados. O motorista seguiu em direção à zona oeste. No caminho fui avisado que, por questão de segurança, estavam a colocar um capuz sobre minha cabeça. Que fazer?, recostei na poltrona e fechei os olhos.
Sonhava com as 80 notas de US$ 100, quando a camionete estacionou e tiraram-me o capuz. Estava no estacionamento de um ambiente “das zelite de olhos azuis”. Parecia um sofisticado clube de golfe, com lagos, caixas de areia, situado no centro de uma grande mata de restinga. A considerar seu prédio principal, as piscinas, saunas e bares, fora fechado para o evento a um custo na casa de milhão de dólares.
Porém, duas coisas chamaram minha atenção: o cheiro intenso da maresia, a indicar a proximidade do mar, e a quantidade de jagunços espalhados pelo terreno, a portar fuzis AK-47, de forma ostensiva. Feito débeis, apontavam aquelas armas de repetição para todos os lados, sem parar.
Enfim, os informes que recebera estavam corretos: tráfico de cocaína pura faz boa rima com AK-47 e jagunço delinquente. E assim foi em todos os ambientes por que passei: jagunços enfurecidos e muito bem armados.
Mas consegui mostrar naturalidade, como se estivesse habituado àquele ambiente de guerra iminente. Por fim, fui conduzido ao anfiteatro, já preparado para a reunião. Os novos quadrilheiros encontravam-se no recinto, feito maricas. Resmungavam em voz baixa, mas a saborear o sistema de ar condicionado ligado na potência máxima.
De minha parte, senti frio com a camiseta que vestia sobre a pele, mas arrumava o material para o trabalho – tripé, tele-prompts e meu inseparável minigravador digital. Foi quando escutei um leve burburinho nos corredores do prédio. Era Dementowa que chegava, protegida por sua ostensiva segurança particular, e acompanhada dos quadrilheiros da velha facção. Era um partido deles! Arrogantes, ruidosos e, sobretudo, fétidos com o intenso verão.
Após a segurança conseguir instalar o silêncio no recinto, a matrona Dementowa assumiu seu lugar no púlpito. Teve início o sermão da missa da cocaína. Para sinalizar, apontou-me um dedo em riste e, qual boneco descerebrado, com dificuldade, fez a leitura do tele-prompt. Houve uma passagem que considero patética:
“Nunca permitam que a verdade apareça, porque ela se alastra rapidamente. Isso será fatal para qualquer um de vocês, entenderam?! Mintam com absoluta certeza e arrogância, mas sorriam plenos de hipocrisia. Sejam implacáveis em suas ações, surpreendam as estúpidas vítimas. Reajam com extrema violência contra qualquer indício de acusação. Se necessário, abram fogo cerrado. Criatividade, meus quadrilheiros, inventem esquemas! Pagarei bem melhor aos que morrerem pela nossa causa. Somente assim nossa poderosa quadrilha tomará o poder na América do Sul.”
PS.: Não me chamo Carlos. Ele é obra da ficção – Zik-Sênior.