Simão-pescador, correspondente na Europa.
Movido por forte disposição, resolvi fazer uma limpeza geral da biblioteca. Já tenho hoje mais de 4 mil livros, entre brochuras e capas duras. Adquiro-os sempre e também recebo muitos de presente. Meus amigos sabem que gosto de ler.
Porém, a maresia é implacável com tudo, inclusive com papel impresso. Pressinto que vou passar pelo menos uma semana sem seguir ao mar, encapando obras literárias já um pouco sofridas.
Contudo, tenho a favor o facto de que Quincas, meu “neto postiço”, está aqui para me ajudar. Mas, como todos podem ver, estou a atrapalhar as coisas: limpo minha biblioteca, reencapo alguns livros e quero escrever ao mesmo tempo.
O motivo dessa confusão é que reencontrei uma obra valiosa, editada em meados do século XIX, que traz histórias muito boas. Incrível, mas parece que estou a ler panoramas do Brasil atual e suas “Estórias da Demente” (título da obra). Vou tentar resumir uma, sempre à procura de não ferir a identidade dos originais, escritos por “Paranoia Eustasia Peixoto”. O nome é este mesmo, acreditem, foi um escritor renomado na freguesia onde morava.
Demente é o sobrenome de uma certa Helena, a qual presumo seja uma personagem terrorista criada por Paranoia. O estranho é que pais honrados hajam mantido esse nome de família: Demente. Mas existem casos inomináveis, como o do Conde Estrôncio Cu-Bunda. Diz a estória que num dia, revoltado, o Conde seguiu ao cartório para trocar seu nome. Então, o solícito tabelião perguntou-lhe para qual nome desejava mudar. E ele, sacudido, respondeu de chofre:
─ “Ora pois, pá, Euzébio Cu-Bunda!”
Resumo da Helena Demente
Na infância, a terrorista era tratada por “Lena”, apelido de família. Por ser uma criança agressiva, gritava com quem a chamavam de “Leninha”: ─ “Já disse que meu nome é Helena, porra!”. Não aceitava carinhos ou adulações; usava palavras de baixo calão, como lhe ensinara seu pai. Era irascível, além de idiota congênita.
Com o passar do tempo, já ao fim da adolescência, tornou-se uma espécie de “dicionário de palavrões”. Muitos continuavam a provoca-la com “Leninha” e ela os respondia cada vez com maiores grosserias. Não vou contar as expressões chulas que usava, mas posso afirmar que eram, digamos, criativas para uma representante da família Demente…
“Lena” decidiu fazer escola superior e optou pela Economia. Contudo, começara em Portugal a Guerra Miguelista e ela resolveu participar ao lado dos absolutistas, a lutar contra os liberais constitucionalistas. Segundo narra Paranoia Peixoto, Helena Demente sempre sonhara em ser uma Soberana, ter poder, fazer e desfazer seguindo seu violento instinto. Veio daí sua opção de se misturar na guerra e, se visse uma oportunidade, “descolar” algum dinheiro por fora.
Quando D. Miguel I foi aclamado rei de Portugal, em 1828, Helena já estava a seu lado, como cortesã, junto com o Partido Absolutista, a Corte, a Igreja e os latifundiários. Não fora amante do rei, embora quisesse ser nomeada para um cargo vitalício que lhe conferisse alto poder. Ao fim, conseguiu obter uma função mesquinha, a ganhar ninharias, bem condizente com a capacidade mental da família Demente.
Porém, D. Pedro I retornou a Portugal em 1831, disposto a tomar o trono de seu irmão mais novo, pois era seu de direito. Leninha percebeu que ia dar merda e logo “bandeou-se” para o lado dos liberais. Por sinal, embora não haja lutado em nenhuma das batalhas, estava presente na Praia do Ladrões – por coincidência, esse era o nome local – quando, após diversas batalhas, as forças liberais de Pedro I reassumiram definitivamente o Império, em maio de 1834. Sem mais combates ou resistência dos absolutistas. Leninha virara liberal na hora certa, graças à falta de postura política e à fome insaciável por dinheiro público.
Alguns factos escritos por Paranoia Peixoto não estão nos livros da História Portuguesa. Por exemplo, para dificultar ao máximo a descoberta de sua infiltração nas forças liberais, Helena Demente conseguiu falsificar várias certidões de identidade. Seu objetivo era atuar junto aos absolutistas, mas agora para praticar atos de terrorismo contra eles.
Em cada ato que realizava, usava nomes falsos (Estela, Patrícia e Wanda) para não ser vista como traidora. Efetuava assalto a bancos, sequestro de emissários de outros impérios, de oficiais absolutistas e até mesmo praticava assassinatos. Pensava ela que, assim, estaria a favorecer os planos de Pedro I para retomar o Império. Pois é, pensava ela…
Todavia, a estúpida não raciocinava, veja bem. Primeiro, não tinha como provar o que fizera, sequer possuía um daguerreotipo para registrar seus atos. Segundo, acreditava estar a auxiliar às forças liberais, mas nenhum de seus líderes militares conferira-lhe qualquer “missão secreta”. Terceiro, nenhum liberal constitucionalista a conhecera, nem sequer ouvira falar de seus nomes.
Após o Império Português retornar às mãos do herdeiro real, Estela, Patrícia e Wanda, encarnadas em Helena Demente, foram presas de supetão por uma milícia absolutista que ainda restava. Leninha deve ter sofrido um pouco nas mãos dos milicianos, mas nada que lhe fosse insuportável.
O texto do Prof. Paranoia prossegue a contar que a jovem Demente conseguiu fugir para a Espanha em fins de 1834, quando aquele império sofria as Guerras Carlistas. A princípio, Leninha sentiu-se em casa, pois o Império Espanhol estava nas mãos do Infante Carlos de Bourbon, que se autoproclamara Carlos V, Rei de Espanha. Mas, sobretudo, por que contava com apoio do general Santos Ladrón. Esse era seu verdadeiro nome, Ladrón…
Leninha ficou muito solidária com os absolutistas espanhóis, pois logo sentiu cheiro de golpe de Estado, mesmo sem saber que Carlos não possuía direito ao trono, mas que somente teve o “general Ladrón” que lhe dera total apoio.
Em suma, este livro de Paranoia Eustasia Peixoto é raro em seu gênero, por demonstrar, segundo sua ótica, como se encontrava desgovernada a península ibérica no século XIX. Ou, de outra forma, tão ibericamente desgovernada que podia ser usada por Helena Demente. Devo dizer, já me ofereceram fortunas por ele, mas recusei a todas. Vou deixá-lo em testamento para a Biblioteca da Universidade de Coimbra.
Agora preciso retornar a meus afazeres de limpeza. Quincas me chama. Mas, antes de finalizar, afirmo que qualquer similitude desta crônica com casos reais ocorridos em nossas “santas terrinhas” será safada coincidência.