Sou humanista


Claudia Reis, Designer.

Está nas redes sociais uma petição pública que pede a “reposição das perdas de aposentados e pensionistas do INSS”. Não tenho dúvida de que, em sã consciência, qualquer cidadão concorda com essa medida elementar. Agravada pelo fato que neste ano, até novembro de 2013, o povo brasileiro já pagou mais de 1 trilhão e meio de Reais em tributos e não teve o devido retorno em serviços públicos de qualidade.

Entretanto, a dita petição, que assinei e distribui na rede, está pessimamente justificada. Seu autor usou de “malícia política” para estimular assinaturas. Devo dizer, contudo, que recebi diversas mensagens de volta, provindas de pessoas que assinaram a petição. Pessoas com distintos matizes partidários e de todas as gerações.

União de gerações

União de gerações

Entretanto, chamou-me a atenção a mensagem que recebi de uma jovem, a quem muito prezo. Com certeza, por seu interesse, leu o longo e confuso texto que motiva a petição e, com elegância, demonstrou não concordar com as acusações políticas que dela constam. Sem dúvida, desnecessárias.

Por se tratar de assunto tão relevante, o questionamento desta jovem motivou-me a publicar neste blog o texto abaixo.

Querida amiga,

Também não acho que os problemas da nação sejam culpa exclusiva do PT, mas sim da própria sociedade brasileira, que é individualista e não consegue ter a fundamental visão de longo prazo, das consequências do caminho que está a trilhar. Pode ficar tranquila, pois tenho certeza que não discordamos. Não sou de esquerda ou de direita e, muito menos, fico “em cima do muro“.

Posso afirmar, sou “Humanista“. O ódio entre classes sociais, políticas e culturais, que se instala no Brasil, faz-me muito mal. Ver pessoas se digladiando como se estivessem no Coliseu, causa-me tristeza.

Como não redigi a dita petição, confesso que não dei bola para as agressões ao PT, pois há muito convivo com vários idosos. Mais de perto, com duas tias pelas quais sou responsável (94 e 90 anos). Sinto na pele como essa faixa etária é negligenciada pelo Estado Brasileiro e pela sociedade. E esse sentimento fala muito mais alto do que qualquer disputa partidária.

Ver uma pessoa com 94 anos ser intimada todos os anos pela Receita Federal para provar suas despesas médicas declaradas no IR é duro de aceitar. Se já é ruim o suficiente alguém saber que está no final da vida, vendo amigos e entes queridos a partir, imagine ainda ficar preocupada em como pagar pelos remédios de que precisa; pagar pelo atendimento médico que não lhe é disponibilizado; e, ainda por cima, saber que trabalhou e contribuiu por tanto tempo para uma nação que não lhe dá valor ou qualquer assistência. No mínimo, assistência emocional.

Para finalizar, pelo fato deste blog ter cunho humanista, entendo que cada cidadão deva refletir sobre quais são as metas da gestão pública: serão as práticas partidárias imediatistas ou o atendimento das necessidades sociais básicas (educação, saúde e segurança) de todas as classes de sua população?

É por isso, minha amiga, que o cunho político-partidário no meio desta petição não me chamou atenção. Meu sentimento é tão forte que, diante deste cenário secular de descasos, que se agrava a cada ano, já até pensei em estabelecer o limite de minha própria vida. Sem suicídio, que fique claro.

Espero que todos os leitores do blog possam refletir sobre essa posição.

Um beijo sincero para você.

Letelba, um homem que viveu convicto e sereno


Letelba, convicto e quase sereno.

Há décadas que desejo narrar o pouco que pude perceber acerca da personalidade de Letelba Rodrigues de Britto, ao longo de mais de 20 anos. Entretanto, sempre tive algum receio de cometer injustiças ou até mesmo dizer besteiras. Contudo, Evandro, um de seus filhos, acaba de publicar um livro intitulado “O comunista que não deixou rastro”.

Biografia de Letelba Rodrigues de Britto

Biografia de Letelba Rodrigues de Britto

Trata-se de uma biografia escrita por Evandro Rodrigues de Britto, biólogo e sanitarista com expressiva atuação em instituições públicas e privadas no Brasil. Logicamente, o texto é repleto do calor e da admiração filial, mas com farta documentação, muitos depoimentos de amigos e familiares, além da conjuntura histórica em que Letelba viveu e trabalhou.

Para uma ideia apenas inicial de quem foi Letelba, em 1929 a Typografia do Lyceu de Artes e Ofícios já editava um de seus primeiros trabalhos sob o título “Revisão Constitucional”. Era uma crítica em que ele propunha mudanças que considerava essenciais na Constituição Federal de 1891, a primeira da República. Por ser então um jovem rebelde, não manipulável pelo status quo vigente, também tido como um bom “encrenqueiro da época”, foi tratado como um perigoso ser da extrema esquerda, perseguido por décadas e ameaçado de prisão inúmeras vezes, sempre acusado de ser um comunista que fomentava a revolução vermelha.

Além de advogado dotado de notória competência, Letelba foi químico, comerciante, gestor de hotéis e fazendas, sempre obtendo bons resultados em suas atividades. Contudo, tinha a característica de ser descuidado com assuntos de dinheiro, o qual fugia ou escoava de suas mãos, não só para os filhos e os amigos, mas para os que comungavam com suas ideias e famílias carentes. Assim, creio ser mais justo chama-lo Letelba, o eterno humanista.

Durante anos de 1970 até o fim dos de 80 tive algumas oportunidades de conviver um pouco com ele e com muitos de seus amigos, inclusive seu filho Evandro. Todos passavam parte das férias e fins de semana na mesma rua de areia batida, próxima à cidade de Araruama. Formavam uma espécie de família espontânea e eu fui o irmão mais novo a ser recebido por ela, apresentado por Fernando Botafogo.  Por sua vez, Letelba, o amigo mais velho, residia semi-solitário em um antigo casarão, em terreno arborizado, de frente para a lagoa. Lembro-me da casa com espaços amplos e simples, poucos móveis, boa cozinha para trocar ideias (comer peixe frito e alface) e uma excelente biblioteca para amansar as dúvidas de ineptos.

Todos os dias Letelba levantava muito cedo; no máximo até às 6 da manhã. Logo seguia para a lagoa e nadava uns trezentos metros até uma determinada área com maior profundidade, onde descobrira haver uma lama viscosa e sem cheiro. Creio que ele acreditava que ela teria bons efeitos medicinais. Às vezes, mergulhava até o fundo da lagoa supersalgada e recolhia um pouco desse material. Então, retornava à praia e passava a lama pelo corpo. Mas, sempre guarnecido sob um grande chapéu feito de palha de arroz trançada, que adquirira de camponeses em um país do sudeste asiático. Se não me engano, a Tailândia.

Nessa época as praias da lagoa eram assim

Nessa época as praias da lagoa eram assim

Certo dia pediu a Evandro que solicitasse uma análise laboratorial da dita lama um tanto gordurosa. O laboratório encontrou fragmentos de conchas, presença elevada de cloreto de sódio, quartzo, sílica, traços de argila e de coliformes fecais; estes, dentro dos parâmetros admitidos. Ou seja, do ponto de vista medicinal a lama não podia ser considerada uma benção ao organismo humano. Ao ler os resultados da análise, Letelba não ficou triste. Se bem me lembro, ainda segurando o papel nas mãos, levantou suavemente o cenho e resmungou “─ Tudo bem, isso não vai melhorar minha pele…” e soltou uma gloriosa risada.

Dos tempos em que não o conhecia

Ao passar dos 60 anos (minha estimativa, nunca soube sua idade), Letelba optou por viver com mais privacidade. Fez sua morada definitiva no casarão da praia, isolada na borda da lagoa de Araruama. Seus poucos vizinhos eram pescadores de subsistência, que usavam artes de pesca ainda muito precárias. Letelba falava com todos, aprendia com eles e oferecia-lhes alguns auxílios.

No entanto, esses humildes pescadores várias vezes foram considerados (pelo rigor aleijado da lei brasileira de então) como “posseiros de terras públicas” e, portanto, processados em “flagrante delito”. Letelba foi perdendo a paz e a paciência, o que fez renascer nele o notório advogado que fora em outras causas. Em defesa das famílias de pescadores, enfrentou e discutiu com as forças do então “governo grileiro”. Resultado: foi várias vezes recolhido (nunca preso), interrogado e investigado pelos delegados patetas de plantão na Região dos Lagos.

─ “Senhor! Seus documentos!”…

─ Não tenho no momento, perdi todos… – sempre a falar baixo.

─ “Por acaso se recorda qual é o número de sua identidade?”…

─ Sim…

─ “Então me diga logo, pô…!”, gritava qualquer dos furiosos delegados.

Com toda a calma Letelba sempre sussurrava os primeiros seis números que lhe viessem à cabeça e decerto nunca conseguiu repeti-los. Mas, com a imposição da burocracia burra, os pelegos do governo continuavam a fazer o cadastro policial do digno cidadão:

─ “Me diga seu endereço completo!”…

─ Rua dos Enjeitados, sem número, bem ali na beira da lagoa.

Considerando a inexistência de tal rua, além do fato de a lagoa de Araruama possuir superfície de 220 km2, é razoável concluir que todos os delegados da polícia da Região dos Lagos, sem exceção, caso desejassem visita-lo em casa, enfrentariam sérias dificuldades métricas e geográficas – na casa ironicamente situada “bem ali, na beira da lagoa”

Soube desses fatos através de vários amigos comuns, que conviveram amiúde com Letelba desde aquela oportunidade. Se romanceei um pouco o ocorrido, não me arrependo, pois foi exatamente dessa forma que sempre consegui ver o sereno, convicto e leal amigo Letelba.

O que presenciei

Durante os anos 70 fui inúmeras vezes para a “casa de pescador” que Fernando Botafogo adquirira na mesma rua de Letelba. Nessa casa simples, sempre com flores nas janelas, junto com a família de Botafogo, vivi momentos inesquecíveis. Era como se a rua do “Reitor Prof. Letelba” fosse a melhor Universidade da Vida e a pequena casa do “Pró-Reitor, Prof. Botafogo”, uma de suas principais Faculdades.

Nos grandes feriados cariocas a rua ficava entulhada de amigos. Eram as reuniões da Família da Alegria. Lembro-me de Letelba, trajando seu traje de camponês e batendo nas portas para acordar os amigos. Eram 7 horas da manhã e Letelba trazia uma garrafa de vodca importada num pequeno isopor congelado. Trazia junto uma horrível taça cor-de-rosa transparente e oferecia vodca a quem abrisse a porta. Certa vez presenciei a seguinte conversa matinal com a mulher de um amigo:

─ “Bom dia, Letelba. Já está bebendo vodca a esta hora?!”…

─ Bom dia, quer um trago?…

─ “Mas que cálice estranho, comprou isso aonde?”…

─ Em lugar nenhum, peguei num “despacho de macumba”…

Quero encerrar este registro emocionado dizendo que se Letelba, o comunista, não deixou qualquer rastro para as forças da repressão, em mim, em seus familiares e em muitos de seus amigos deixou inequívocos rastros de humanidade e de crítica reflexiva.