Além de selvagem, predador


Ricardo Kohn, Escritor.

A fauna ocorrente nos ecossistemas naturais possui necessidades alimentares, as quais, uma vez satisfeitas, promovem sua sobrevivência, ainda que nem sempre a garantam. Afinal, imprevistos acontecem… Segundo pesquisadores, todas as espécies faunísticas pertencem a pelo menos uma cadeia alimentar, que inclui nutrientes específicos, além de outros espécimes da própria fauna – caso da fauna carnívora. A academia deu título a este tipo de cardápio: chama-se “cadeia trófica”.

Aqueles que trabalham para a conservação da fauna silvestre, dadas as espécies distintas que ocorrem nos sistemas ecológicos, precisam identificar qual a mais provável cadeia trófica existe em cada um. Caso contrário – com o passar do tempo –, poucas espécies faunísticas poderão ser conservadas. Afinal, há espécies carnívoras, omnívoras e herbívoras em busca de alimentos, ativas em variados habitats.

Nesta longa jornada, após inúmeros trabalhos de campo, o que realmente importava aos estudiosos era inferir “quem come quem” ou “o quê”; nada mais. Desse modo, conseguiram apurar as sequências de espécies silvestres que formam cadeias tróficas[1], ordenadas com base em seus hábitos de alimentação.

Diante disso, abre-se a questão:

─ Por qual motivo as espécies faunísticas que se encontram no topo da cadeia trófica são tratadas em livros e documentários como “animais selvagens e predadores”?

Afinal, estes membros da fauna ou visam à própria alimentação ou a proteger seu espaço domiciliar. Portanto, é normal que não ataquem pelo simples desejo de matar. Ao contrário, aproximem-se com uma espécie de “amizade imprevista” pelos sapiens. Veja a foto ao lado, onde um gorila afaga e protege um filhote de felino. Assim, deduz-se que há causas elementares que sempre motivam a fauna silvestre: alimentação imediata e, na perspectiva futura, sobrevivência de cada espécie. Todavia, sem perder sua característica protetiva de outra espécies faunísticas.

Por volta de 200 mil anos atrás, surgiu no sul da África uma nova espécie de primata. Sabe-se que, assim como outros carnívoros silvestres, formavam grupos nômades que se dedicavam à caça e abate de outros animais; tudo indica que eram temerários quando atendiam às próprias necessidades. Provavelmente, eram primatas bípedes, viviam no solo das matas, não se locomoviam pelos cipós de árvores, e reproduziam-se com extrema facilidade.

Coube ao botânico e zoólogo sueco, Carl Nilsson Linnaeus, propor uma classificação das espécies de plantas e de animais, segundo a visão científica do século 18. Após intenso trabalho de observação e pesquisa de campo, em 1735 concluiu a origem da taxonomia moderna, que consta de sua obra “Systema Naturae”.

Desse modo, baseados na lógica de Linnaeus, biólogos e antropólogos realizaram a classificação do novo primata africano, qual seja: Reino [Animalia]; Filo [Chordata]; Classe [Mammalia]; Ordem [Primatas]; Família [Hominidae]; Gênero [Homo]; Espécie [Homo sapiens]. Infere-se que, por meio desta estrutura de classes, o ser humano é animal, mamífero e primata. Portanto, concluíram que durante milhares de anos, este hominídeo foi mais um primata ativo da fauna silvestre, com taxonomia bastante similar à dos chimpanzés[2].

Estimam que o sapiens iniciou sua migração para fora continente africano por volta de 90 mil anos atrás. Antes de fixar-se no campo, ocorrida há cerca de 12 mil anos, o número total de indivíduos desta espécie permaneceu inferior a 1 milhão de primatas. Porém, com a subsistência quase garantida pelas práticas agrícolas que descobrira, o sapiens optou por fixar-se no campo. Para isso, arquitetou casebres e vilas com vistas a plantar sementes ao derredor de suas moradas. Então, há cerca de 10 mil anos, a população mundial de sapiens arcaicos, a aproveitar os bens gratuitos que a natureza lhes concedia, alcançou algo em torno de 5 milhões de primatas sapiens[3].

Contudo, estes sapiens arcaicos não previram as consequências de sua fixação no campo, da exuberância imprevista de suas primeiras plantações, assim como do início da troca de produtos agrícolas entre tribos semelhantes. O escambo foi o processo espontâneo que se sucedeu. Consistia na troca de produtos entre sapiens, habitantes de vilas próximas. Talvez haja sido o gênero ancestral do atual “comércio toma lá, dá cá”.

Provavelmente, as trocas eram realizadas através de conversas simples, que aconteciam mais ou menos assim: “– Dou-lhe algumas sementes e, em troca, peço-lhe um punhado de trigo” – decerto, o idioma era outro, pleno de grunhidos monossilábicos.

Por volta de 10 mil anos atrás, produtos agrícolas não possuíam valor ($$$), pois a terra e os insumos eram gratuitos. No entanto, sua produção exigia trabalho duro no campo: plantio, trato, colheita de talos e gramíneas destinados a alimentar os sapiens da própria aldeia; quando havia excedente, realizavam escambos com outras vilas de sapiens agrícolas. Infere-se que a transição realizada por grupos nômades, que se tornaram agricultores da subsistência, foi árdua, mas não definitiva. Muitos deles continuaram nômades-coletores, embora não apenas com a caça que abatiam.

Foi neste cenário que os dois grupos de sapiens tentaram conviver. Por óbvio, sem os cooperativos resultados de humanidade; ao contrário, viveram a criar raivosos conflitos pelos continentes. Até por que, aqueles que permaneceram coletores primitivos tornaram-se sapiens vagabundos e, para sobreviver, formaram súcias de primatas a saquear/destruir vilas e plantações dos sapiens trabalhadores.

Em suma, naqueles tempos tortuosos, acredita-se que “ao trabalhador coube o poder de manter viva a espécie; ao vagabundo, apenas fomentar conflitos”. O que fortalece esta hipótese foram as lutas inclementes nos 10 mil anos que se seguiram: batalhas e guerras permanentes, onde tribos antagônicas de sapiens trabalhadores e vagabundos – apostavam que venceriam. Porém, ambas foram derrotadas.

Por fim, admita-se que o sapiens moderno exista na Terra há pelo menos de 4 mil anos. A maioria de seus indivíduos acredita-se dotada da única inteligência primordial do universo. Capacitada para dominar, explorar e devastar qualquer ecossistema terráqueo. Bastaria que se sentisse prejudicada na construção da sua inóspita antroposfera. Sim, os espaços onde os ecossistemas primitivos reduziram-se a quase nada; foram vandalizados, substituídos por toneladas de cimento, ferragens e o asfalto. Vilas simples estabilizadas, tornaram-se cidades, metrópoles e megalópoles, império de assassinos, habitat preferencial das corjas de inomináveis ladrões. Em suma, somente os sapiens são selvagens, únicos predadores absolutos da Terra.

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[1] As cadeias tróficas são dinâmicas, alteram-se por diferentes fatos, mas sobretudo pela variação das populações faunísticas, assim como, em paralelo, pela evolução espontânea das espécies que restarem.
[2] Taxonomia do Chimpanzé: Reino [Animalia]; Filo [Chordata]; Classe [Mammalia]; Ordem [Primatas]; Família [Hominidae]; Gênero [Pan]; Espécie [Pan troglodytes].
[3] Sugere-se a leitura do artigo “O impressionante crescimento da população humana através da história”, de autoria de José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE.